São Paulo, domingo, 15 de dezembro de 1996
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A ruptura da normalidade

MAURICIO STYCER
DA REPORTAGEM LOCAL

Na avaliação do crítico e ensaísta Décio de Almeida Prado, 79, o período que Paulo Emilio passou na prisão, às vésperas de entrar para a faculdade, entre 35 e 37, acabou alterando o rumo que se delineava para a sua vida.
"Não posso falar sobre coisas que não aconteceram. Mas, de qualquer maneira, ele me escreveu uma carta, na prisão, dizendo que, a partir daquele momento, ele tinha certeza que a vida dele não seria uma vida normal", diz Almeida Prado, nesta entrevista à Folha.
Colega de Paulo Emilio no Liceu Nacional Rio Branco do primeiro ao quinto ano (1929-33), Almeida Prado se lembra em detalhes dos primeiros passos do colega na política. (MAURICIO STYCER)
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Folha - Há versões conflitantes sobre quem iniciou Paulo Emilio na política, no início dos anos 30.
Décio de Almeida Prado - Paulo Emilio se politizou rapidamente. Muitos anos depois, em resposta a uma pergunta minha, ele contou que quem o iniciou foi o Décio Pinto de Oliveira (morto, em 1934, durante conflito entre estudantes de esquerda e integralistas na praça da Sé, no centro de São Paulo).
Ele era irmão de um colega nosso de ginásio, Ciro Pinto de Oliveira. O Paulo Emilio ia a casa do Ciro, e lá o Décio começou a politizá-lo.
Folha - Décio Pinto de Oliveira era filiado ao Partido Comunista?
Almeida Prado - Não sei se era filiado, mas era comunista. A filiação não era uma coisa muito fácil...
O irmão do Paulo Emilio, Francisco Guilherme, que era estudante da Politécnica (engenharia), uma escola muito séria e severa, brincava com Paulo Emilio: "Eu, se quiser entrar para o Partido Comunista, o Partido Comunista me aceita. Eu sou uma pessoa séria. Você, eles não aceitam" (risos).
Folha - Nessa época, 1932/33, Paulo Emilio nunca tentou levar o sr. para a política, catequizá-lo?
Almeida Prado - Não, porque ele me achava muito cético. E eu era, mesmo. Paulo Emilio me conhecia bem. Ele sabia que nunca me converteu ao comunismo. Mas nunca tivemos muitas discussões, porque eu também aceitava bem os pontos de vista dele.
Folha - E a família dele, como via a aproximação de Paulo Emilio com o comunismo?
Almeida Prado - O pai dele, que na época era um alto funcionário do governo, nunca interferiu na vida política do Paulo Emilio, mesmo quando Paulo Emilio escreveu artigos criticando a fábrica Santa Maria, que pertencia à família Salles Gomes.
Mas, também, quando ele foi preso, o pai não fez nada para soltá-lo. Somente, segundo me contou Paulo Emilio anos mais tarde, o pai procurou o delegado e disse: "Se acontecer alguma coisa ao meu filho, eu lhe mato".
Folha - Quem mais, na sua opinião, teve importância na formação política de Paulo Emilio?
Almeida Prado - Ele desenvolveu uma amizade com (o físico) Mário Schemberg (1914-1990), entre 34 e 35. Naquela época, havia acabado de ser publicado um tratado de economia política do Charles Gide, tio do escritor André Gide. Na França, era a última palavra em matéria de economia.
Paulo Emilio me contou que tinha lido trechos do livro, junto com Mário Schenberg, e tinham dado boas risadas. Fiquei um pouco chocado, pois era um livro para ser considerado com um certo respeito. Como eles eram de esquerda, acharam o livro ridiculamente errado, falso.
Folha - O sr. estava com Paulo Emilio no momento da prisão.
Almeida Prado - Na ocasião, eu acreditei, e acho que Paulo Emilio também, que ele não estava sendo preso. Pensei que estava sendo levado para prestar esclarecimentos. Nem avisei a família dele. À noite, me telefonaram da casa dele, perguntando o que houve, que ele não tinha aparecido ainda em casa.
Folha - O sr. esteve com Paulo Emilio no Presídio do Paraíso?
Almeida Prado - Várias vezes. Acho que as visitas eram às quintas-feiras. Os presos ficavam no pátio, recebendo os seus amigos e parentes. Fazíamos um grupinho em torno dele: nós, os amigos, o irmão e a mãe dele -e Paulo Emilio era sempre o mais animado...
Folha - Pelos relatos, a vida de Paulo Emilio na prisão, entre 1935 e o início de 1937, não era muito dura. Depois do Estado Novo, no final de 1937, a vida dos presos políticos iria piorar.
Almeida Prado - Paulo Emilio falou sobre isso, num curso sobre a década de 30, no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), da USP. Ao fazer uma apreciação sobre o que a década de 30 havia apresentado de novo, ele disse que uma das coisas novas era o desenvolvimento do suplício.
Antes, havia, mas era mais na base da tapona, da humilhação. Depois, disse Paulo Emilio, começaram a usar métodos científicos.
Folha - Nessa ocasião, ele falou sobre a experiência pessoal dele?
Almeida Prado - Ele falou que, com ele, nunca aconteceu nada. Aliás, ele disse que, quando havia alguma coisa, era só contra operários, que as pessoas mais graduadas não sofriam nada fisicamente.
Folha - O que mais o sr. se lembra do Presídio do Paraíso?
Almeida Prado - Conversávamos livremente no pátio, não ficava ninguém vigiando ou escutando. Ele também me contou que a pessoa que fazia a censura das cartas acabou virando comunista.
Folha - Paulo Emilio alguma vez mencionou com o sr. que planejava fugir do Paraíso?
Almeida Prado - Não. Ele entrou na fuga 13, 14 dias antes. Não foi dos primeiros a imaginar, planejar, a fuga.
Folha - Pela facilidade com que os 17 presos fugiram, o sr. acha possível imaginar que a polícia tenha feito vista grossa para a fuga?
Almeida Prado - Não. Acho que houve descaso, mas nada intencional. Era uma prisão improvisada. Era tudo mal organizado. A polícia ainda não era muito especializada. Foi uma fuga de presos, como até hoje há fugas de presos.
Folha - Qual a importância da prisão na vida de Paulo Emilio?
Almeida Prado - Quando ele foi preso, ele se desenvolveu politicamente. Antes, ele estava se encaminhando em outro sentido. Se ele não fosse preso, ele ia fazer Faculdade de Filosofia e, provavelmente, iria para outro lado.
Folha - Que lado?
Almeida Prado - Talvez, um lado mesmo de filosofia, sociologia, ciências sociais... Não posso falar sobre coisas que não aconteceram.
Mas, de qualquer maneira, ele me escreveu uma carta, na prisão, dizendo que, a partir daquele momento, ele tinha certeza que a vida dele não seria uma vida normal.
Não disse nessas palavras, mas o sentido era esse.

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