São Paulo, segunda-feira, 16 de dezembro de 1996
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FHC tem mais poder com nomeações que Clinton

MARTA SALOMON
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Conseguir os votos de 308 deputados e 49 senadores para aprovar a reeleição sem barganha política é "impossível", diz o cientista político e professor da UnB (Universidade de Brasília) David Fleischer.
Fleischer avalia que o presidente Fernando Henrique Cardoso tem mais poderes sobre o Orçamento e a nomeação de cargos que Bill Clinton, reeleito nos EUA.
O modelo de reeleição norte-americano -sem licença prévia do cargo-, que os aliados de FHC querem copiar aqui, contraria cem anos de história política brasileira, sustenta o professor.
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Folha - A fórmula de reeleição sem licença prévia do cargo é compatível com a tradição política brasileira?
David Fleischer - Em primeiro lugar, a reeleição não é tradição no Brasil. Desde que a República foi instalada, um presidente pode voltar depois de um intervalo. Diferentemente da Costa Rica ou do México, onde o presidente nunca pode voltar. Mesmo no período militar, não foi permitida a continuidade, como no Chile, onde o (general Augusto) Pinochet passou 17 anos.
A questão da desincompatibilização é uma longa tradição, desde a Constituição de 1946. Aqui se presume que qualquer detentor de cargo executivo vai usar e abusar da máquina pública e do pessoal administrativo para favorecer sua eleição. Na Europa e nos Estados Unidos, não há tradição de licença prévia. E fica até difícil explicar isso. Na última eleição americana, o que mais se acusou Clinton foi de abusar das contribuições financeiras, especialmente de estrangeiros. Mas ninguém o acusou de abusar do cargo.
Folha - E na hora da decisão, a tradição vai pesar?
Fleischer - No Brasil, é muito mais importante ver o lado prático. Eu tenho certeza de que a desincompatibilização vai ser mantida. E o presidente Fernando Henrique, se puder ser candidato, vai ter que renunciar ao cargo em 1º de abril de 1998. Não é pelo presidente. Mas os deputados e senadores não vão deixar os atuais governadores disputar a reeleição sem se desincompatibilizar. No raciocínio do deputado e do senador, o cargo de governador afeta muito mais sua política no Estado.
E, enquanto não tivermos uma cultura política e leis que dêem poder aos juízes eleitorais de cassar candidaturas diante de abusos, não tem muito jeito. Se você disser que presidente, governador e prefeitos podem concorrer à reeleição nos cargos, os ministros, os secretários de Estado e os presidentes de estatais vão querer o mesmo. O que é justo para um é justo para os outros. Todos são ocupantes de cargos executivos.
Folha - Falando em lado prático, o fato de a reeleição depender dos votos de três quintos do Congresso torna inevitável um rateio prévio do poder?
Fleischer - Não temos nenhuma perspectiva de um único partido ganhar a eleição sozinho e conseguir governar. E, para amarrar a coligação, você tem de ratear o governo. Isso é tradição no mundo inteiro.
Vocês, jornalistas, vão ter que ficar atentos para contabilizar o custo da reeleição. Deve ser alto, como foi alto o custo para aprovar um mandato de cinco anos para Sarney. Esse tipo de mudança tem custo, e o governo vai ter de negociar e barganhar. Embora o presidente diga que não vai barganhar nada, é claro que sempre tem barganha política.
Folha - Não é possível aprovar a reeleição no Congresso sem barganha?
Fleischer - Eu acho impossível.
Folha - O sr. votou no Fernando Henrique?
Fleischer - Eu não era eleitor ainda em 94. Só agora, em 98, vou votar (o cientista se naturalizou).
Folha - O sr. votaria nele?
Fleischer - Sim, teria votado.
Folha - Os aliados da reeleição dizem que defendem a "recandidatura" de FHC. Faz diferença?
Fleischer - Não. É uma candidatura a um segundo mandato. Mas essa questão de nome é interessante. O (presidente da Argentina, Carlos) Menem, quando conseguiu a primeira reeleição, passou a não contar mais seu primeiro mandato e poderá até ser candidato novamente em 1999. Não é o caso aqui, a não ser que se permita a reeleição sem limites.
Folha - No debate da reeleição, vira e mexe fala-se da fórmula Menem. É possível comparar?
Fleischer - De uma certa maneira. Menem teve muito sucesso na reeleição em 1995 porque seu plano de estabilização estava tendo êxito no combate à inflação, apesar do desemprego. Era a aposta no conhecido. Embora agora ele esteja muito impopular.
A grande diferença na Argentina, como nos EUA, é que não há regras universais para as eleições no nível federal e no estadual. Isso é um complicador no caso brasileiro. Aqui é tudo atrelado.
Folha - Maluf é o grande obstáculo à reeleição?
Fleischer - É Maluf quem aparece agora como o grande crítico. Mas a situação econômica e social em 1998 é que vai definir a estratégia Maluf. Se ele sentir que tem chances, vai para cima. Senão, fará uma barganha para disputar o governo de São Paulo. Usualmente, o político é pragmático, a não ser que ele esteja obcecado.
O partido do Maluf está dividido, com mais de 600 prefeitos recém-eleitos precisando do governo e que não gostariam de ver barrado o direito de reeleição para si.
E tem muitos deputados que não querem perder vantagens junto ao governo. São governistas natos e não querem ser empurrados para a oposição. Vão ficar na chuva? O poder da caneta é muito forte.
O presidente brasileiro tem poderes muito mais fortes que o presidente americano, por exemplo. Clinton tem 3.000 cargos de confiança para nomear, dos quais 400 passam pelo Senado. Fernando Henrique tem uns 20 mil para nomear e pouquíssimos passam pelo Senado. Tem ainda poder de manipular o Orçamento da União, reter isso, gastar aquilo.
Folha - Então qual é a maior pedra no caminho da reeleição?
Fleischer - Eu diria que a maior pedra é o processo de barganha. Se de alguma forma a barganha se torna inviável, se pedem coisas demais, isso é um obstáculo.
Folha - É possível providenciar uma legislação que garanta ao candidato à reeleição as mesmas condições de seus adversários?
Fleischer - É difícil igualar o mandatário que disputa a reeleição a qualquer desafiante. É claro que um presidente que está tentando a reeleição e faz um jantar para levantar fundos pode arrecadar US$ 5.000 por um prato de comida miserável. Um presidente que está no poder atrai mais. É uma coisa inerente ao cargo.
Folha - Como ficam os adversários?
Fleischer - Há espaço para candidaturas mais à esquerda e mais liberais. A esquerda está atolada por falta de uma proposta alternativa. Vai ter que fazer isso, como o Maluf, que está saindo da toca e apresentando alternativas.
Folha - Os tucanos votaram contra em 1994. O Maluf já foi a favor, quando ele mesmo poderia se beneficiar. Essa emenda não está marcada pelo casuísmo, não é produto de uma conveniência?
Fleischer - Não acho que seja totalmente um casuísmo. É claro que toda mudança eleitoral é um casuísmo. Eventualmente, vai beneficiar alguém e prejudicar alguém. Eu discordo que seja pelo desespero de não ter outros candidatos. Se a situação econômica for favorável e o presidente apoiar outro candidato, ele terá chances.
Folha - Seus alunos na UnB se interessam por política, lêem jornal?
Fleischer - Depois da democratização do país, a política passou a não ser tão excitante. Eu quase coajo meus alunos a ler os jornais. E não é por falta de dinheiro que eles não lêem. As prioridades são outras: os alunos estão mais mais pragmáticos e menos engajados.

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