São Paulo, segunda-feira, 16 de dezembro de 1996
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Pareja, nova versão do seja herói, seja marginal

FERNANDO GABEIRA
COLUNISTA DA FOLHA

Os meninos que trabalham como aviões nos morros do Rio têm uma grande inveja de pessoas com 20 anos de idade. E sempre dizem para elas: meu sonho era poder ficar velho como você.
Eles sabem que muitos morrem no caminho. E invejam os que sobrevivem até a maioridade. Eles sabem também que há muitas maneiras de se matar no Brasil.
Descobri isso com a morte de Cara de Cavalo, um dos grandes bandidos do Rio. A coisa começa na imprensa, com a pessoa se tornando famosa. Em seguida, através da pressão, a polícia se vê obrigada a matar o fugitivo, dando à sociedade uma sensação de alívio. Como se o crime tivesse sofrido uma grande derrota e, a partir de agora, todas as famílias pudessem respirar em paz.
Há outro tipo de morte, a que acontece depois que o bandido famoso é preso. Aprendi isto convivendo rapidamente com Lúcio Flávio Lirio. Viajamos de camburão da Ilha Grande para o Rio. Ele me contou todas as suas fugas. Inclusive me propôs fugir com ele, o que conseguiu menos de 24 horas depois de chegarmos ao Rio.
Ele tinha inimigos dentro da cadeia. E o grande inimigo dentro da cadeia é o chamado robô. O robô mata quando estamos distraídos e confessa o crime com a maior naturalidade. De um modo geral, é um prisioneiro com muitos anos de condenação. Não tem mais esperanças de sair legalmente, nem energia interna para sonhar com a fuga.
É quase impossível escapar ao robô. Ele ataca pelas costas, quando você está dormindo. Talvez seja por isso que Leonardo Pareja dizia que não gostaria de ser morto pelas costas.
Mas quem pode escolher sua morte na cadeia? Lúcio Flávio que era muito inteligente e articulado, acabou sendo surpreendido também. O curioso é que nunca nos lembramos do nome dos matadores. Eles aparecem, prestam depoimento e voltam às celas. O que significam 15 anos a mais para quem está condenado a 40?
Os robôs ganham mais banho de sol, visitas íntimas, quem sabe salsa e tomate para o tempero da comida. Se for preciso, matam de novo, pois afinal são robôs, não apenas porque se movem mecanicamente para seus crimes, mas porque qualquer vestígio de esperança desapareceu de seu coração.
Os meninos do morro têm razão quando invejam os que chegaram aos 20. Sabem que cada minuto de vida é um milagre e que, de uma certa maneira, todos estão com a carteira vencida, com o prazo de garantia ultrapassado.
A frase na obra de Helio Oiticica, seja marginal seja herói, talvez tenha uma conotação diferente alguns anos depois da morte do artista plástico.
Marginais solitários, articulados, contraditórios como Pareja e Lúcio Flávio são uma espécie em extinção. A organização e disciplina do tráfico de drogas, suas necessidades militares, acabaram criando pequenos exércitos juvenis.
Para essa garotada, chegar aos 18 é a suprema felicidade. Aparecer na imprensa, dando entrevista, conquistando corações, isso é o tipo de glória que talvez nem mais almejem. Aprenderam também que a foto no jornal é o prenúncio da morte e cada entrevista é, na verdade, um testamento.
Pareja morreu depois de uma sucessão de mortes. Todos os líderes da rebelião foram assassinados antes dele. Esta sequência de mortes, nem Freud explica. Jung, talvez: coincidências, sincronicidade.
Coisas do Brasil. Escondemos nossas penas de morte, como escondíamos, antigamente, a tuberculose de nossos tios. O caldeirão dos presídios está explodindo, crianças estão morrendo na famosa "guerra às drogas" e ainda assim continuamos dando a impressão de que as coisas marcham bem nessa área.
Por que a bandeira do Brasil no caixão de Pareja? De uma certa maneira, fracassamos na missão de oferecer alternativas não apenas para eles, mas para milhares de crianças que se tornam marginais. Por que levar com eles, para o seu modesto latifúndio de sete palmos, a eterna lembrança desse fracasso?

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