São Paulo, segunda-feira, 23 de dezembro de 1996
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A hora e a vez do Brasil

JOÃO SAYAD

Durante as festas, fazemos coisas aparentemente sem sentido. No Carnaval, os pobres e os favelados se vestem de reis e rainhas, enquanto os ricos se fantasiam de pobres. Agora, no Natal, mandamos e recebemos cartões com mensagens iguais, para desespero do correio, e trocamos presentes, para alegria do comércio.
Na verdade, as festas invertem os hábitos cotidianos e mostram o sentido ou a falta de sentido -não das festas, mas de todos os outros dias. São um intervalo em que viramos o mundo de cabeça para baixo para refletir sobre os outros dias.
Durante o Natal, fazemos o que fazemos o ano inteiro -trocamos mercadorias. Só que, nesse dia, sem lucros, o que não faz sentido nos outros dias.
Assim, não é verdade que o consumismo tenha estragado o Natal. O Natal dá lucros, mas a troca de presentes é a oportunidade anual para refletir e pensar sobre a procura de lucros e vantagens que domina todos os outros dias do ano. Imagino que, em outras épocas, a festa do nascimento de Cristo deve ter sido comemorada de outras formas, com outras inversões de cotidianos diferentes.
Fico pensando como seria o Natal do ano 2100. Será que terá chegado a vez de o Brasil ser parte do Primeiro Mundo, no sentido de ser invejado e copiado por diversas culturas do Hemisfério Norte e do Oriente? Será que nesse futuro longínquo teremos contribuído para a civilização ocidental e modificado a festa de Natal? Ou Brasil e brasileiros deixarão de existir num mundo futuro sem nações?
Da forma como a noção de progresso está definida atualmente -o esforço de crescimento e eficiência que preocupa todas as colunas de economia-, ela tem como objetivo nos transformar em americanos. Queremos ser idênticos ao Primeiro Mundo de hoje.
Esse objetivo e esse sonho não me entusiasmam. E poderiam ser atingidos de outras formas. Já comemos hambúrguer, nos vestimos como americanos e dependemos do dólar.
Seria mais fácil nos converter em imenso Porto Rico com governo, orçamento e política monetária determinados em Washington. Não é muito, mas é melhor do que ser um grande Panamá, como a querida Argentina, com moeda americana e orçamento nacional.
Tenho a impressão de que o Brasil não tem muita coisa a contribuir para este mundo que está aí, capitalista, eficiente, inovador, mas também excludente, cego no objetivo de se tornar mais rico e surdo aos que ficam para trás.
Somos de outra natureza. Como em toda a América Latina, temos muitos revolucionários, muitos ditadores, muitos políticos -homens preocupados com coisas públicas- e poucos empresários. Muitos artistas e poucos cientistas.
Nestes 500 anos de capitalismo, nosso desenvolvimento tinha que ser dependente mesmo das idéias, práticas e invenções de outros países do mundo. É uma civilização muito diferente de nós mesmos.
Depois do período rápido e excepcional em que recebemos muitos imigrantes da Europa, do Extremo Oriente e do Oriente Médio, em que plantamos café e indústrias de quase tudo, entramos, a partir de agora, na época em que os brasileiros poderão se tornar mais prósperos, mais limpos, sem inflação, com telefones celulares, parques aquáticos e temáticos e outras coisas boas mais.
Mas não será coisa brasileira, criação nossa, produção das nossas vontades. Vamos apenas nos abrir e deixar entrar aqui essa onda de prosperidade que tem trazido felicidade e alegria para alguns, em alguns países, e exclusão e desemprego para outros.
Não é um futuro sombrio. É muito melhor do que nosso passado recente. A exclusão e o desemprego não criarão movimentos fundamentalistas ou senderos luminosos aqui pelo Brasil. Podemos até nos tornar cada vez mais democráticos, o que é uma mudança muito querida por nós.
Mas a verdadeira contribuição brasileira virá bem mais tarde, em outra fase, tão distante que pode parecer ficção científica -quando o mundo estiver se tornando mais afetivo, mais alegre, mais artístico, mais preocupado com coisas públicas do que privadas, mais autêntico, mais livre e mais preguiçoso.
Nesse futuro de ficção científica, o Natal será comemorado de forma diferente. Será uma festa em que as pessoas trocarão cartas comerciais e venderão produtos com lucro embaixo da árvore iluminada, depois de passar o ano inteiro trocando cartões de boas festas e presentes sem sentido.
Aí, sim, chegará a vez de o Brasil assumir o papel de líder cultural, econômico e político, uma das grandes potências mundiais, ao lado de outros países latino-americanos.
Pode parecer otimismo ou ufanismo exagerado. São apenas os meus mais sinceros votos de feliz Natal.

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