São Paulo, sexta-feira, 27 de dezembro de 1996
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Males da América aparecem em 1996

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA

Como num filme-catástrofe, todos os males do cinema norte-americano parecem ter vindo à tona de uma vez só, e avassaladoramente, em 1996.
É fácil enumerar: 1) o predomínio dos executivos e dos bancos determinou o triunfo da impessoalidade sobre a paixão; 2) a tecnologia cada vez mais tomou o lugar da fábula, para impor a si própria como única fantasia possível; 3) o sopro inovador dos independentes perdeu-se, burocrático e domesticado, num mar de sangueiras gratuitas, diálogos "espontâneos" e fumantes inveterados.
Como se isso não bastasse, a montagem eletrônica -mais rápida- consolida-se como novo fator de constrangimento dos cineastas, como já observou John Carpenter, um dos bastiões da inteligência em Hollywood: os produtores exigem que o acabamento do filme seja muitas vezes mais rápido, o que suprime o tempo necessário a pensar o material.
Com tudo isso, é lógico que Hollywood, imperatriz do mercado, tenha se valido de seu recurso mais tradicional para se impor: uma máquina publicitária que garante bilheterias cada vez mais fabulosas para filmes cada vez menos -"Independence Day" à frente.
No entanto, os EUA ainda produziram uma respeitável lista de exceções. Entre os independentes, Julian Schnabel surgiu com "Basquiat". Às vezes ingênuo, esse filme afirma qualidades peculiares para uma arte que vai fechando seu 101º ano de existência.
Entre elas, destaquem-se o amadorismo -Schnabel é um artista plástico que, provisoriamente, mudou de ramo- e a paixão que o diretor investiu ao encontrar no cinema a linguagem apta a mostrar a vida e a arte de outro artista, J.M. Basquiat.
O artesanato afirmou-se em "Basquete Blues", em que Steve James seguiu durante anos a trajetória de dois jovens basquetebolistas para compor um documentário não sobre esporte, mas sobre o sonho de ascensão social entre os negros norte-americanos.
Na outra ponta ficou "Missão Impossível", aventura de encomenda em que Brian De Palma contrabandeou seu estilo pessoal a cada plano e mostrou a diferença que um grande diretor faz, mesmo num "blockbuster".
No mais, alguns nomes confirmaram o que se esperava deles: Carl Franklin ("O Diabo Veste Azul"), Woody Allen ("Poderosa Afrodite"), Francis Coppola ("Jack"), Gus Van Sant ("Um Sonho sem Limites"), John Carpenter ("Fuga de Los Angeles"). Martin Scorsese fez um filme fortíssimo na primeira metade ("Cassino"). Pode haver mais algum. Seguramente, não muitos.
O Oscar foi o mais retrógrado da década, o prêmio de melhor roteiro para o "whodunit" "Os Suspeitos" parece ter sido dado para lembrar que o vácuo engenhoso é quem dá as cartas.
O "blockbuster" do ano, "Independence Day", é em todo caso mais econônico: cinco minutos de engenho, no início. Depois, ideologia e vazio.
Maldito
O Oscar de maldito da temporada vai para "Show Girls", de Paul Verhoeven, claro. Para falar mal dele, valeu tudo. Da inexpressividade da atriz à suposta pornografia dos propósitos. Uma ova. Esse inteligente "remake" de "A Malvada", de Mankiewicz, trocou o teatro pelo topless para melhor mostrar uma América viciosa, reduzida a corpos, e mesmo assim a corpos tão indevassáveis quanto a carapaça do herói de "Robocop" (do mesmo Verhoeven).
O cinema norte-americano é um pouco como o capitalismo. Tem suas crises cíclicas. É disso que parece estar se aproximando desde que, no meio dos anos 70, "Tubarão", de Steven Spielberg, e "Guerra nas Estrelas", de George Lucas, assentaram as bases da produção atual.
Esses filmes recriaram a melhor tradição do filme de aventuras hollywoodiano, e ajudaram os estúdios a sair de uma crise que se iniciara nos anos 50.
O melhor desse veio está para ser explorado. As apostas passaram a ser feitas em poucos filmes, cada vez mais caros e arriscados. A tecnologia de efeitos deixou de ser um instrumento a serviço do espetáculo para se tornar, cada vez mais, o próprio espetáculo.
Com todo o seu conservadorismo, o Oscar deste ano (referente a 95) não deixou de apontar uma tendência já indicada há tempos pelos executivos da Disney: a necessidade de valorizar filmes menores, em que se empenhe menos dinheiro e, eventualmente, mais alma, como "Despedida em Las Vegas", de Mike Figgis.

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