São Paulo, domingo, 29 de dezembro de 1996
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Distributivismo e racionalidade

ROBERTO CAMPOS

Distribuição de renda é um assunto que continua a render no nosso país, por uma variedade de razões, algumas compreensíveis, outras insensatas, mas quase todas fora de foco. Tudo se prende a um suposto, que se tornou implícito na visão do mundo do homem moderno; essencialmente a partir do começo do século 19, segundo o qual o homem tem nas mãos poderes de mudar o mundo. Antes disso, o gênero humano aceitava a sorte que lhe reservava o destino, ou os desígnios da Providência, e tratava de propiciar a benevolência das forças sobrenaturais pela magia ou pela religião. A Revolução Industrial e a expansão do capitalismo trouxeram a crença no progresso ilimitado. Essa foi, por excelência, a ideologia do século passado, da qual estavam permeados não apenas o pensamento econômico liberal de antes de 1914, mas também o marxismo, e todas as versões reformistas, em particular de tendência socialista.
Não seria difícil entender o desejo de transformar o mundo. Ele surge de duas direções complementares. Por um lado, os poderes da razão, espelhados nas conquistas da ciência, da tecnologia e do processo de acumulação produtiva, ofereciam resultados concretos e visíveis. Por outro lado, a rapidez dos câmbios econômicos, desestruturando a sociedade tradicional e os velhos valores codificados na religião e nos usos assentes (assim como a urbanização e o abalo das antigas formas de produção agrárias), começavam a provocar deslocamentos penosos. Manchas de pobreza extrema se concentraram nos recém-surgidos feios centros industriais, e acentuaram-se os contrastes entre a nova riqueza e a nova pobreza. Esta não mais podia contar com a ajuda difusa do meio rural -da família, da aldeia e da igreja.
Tudo foi objeto de críticas bem conhecidas, inclusive as clássicas de Marx e Engels. Também é sabido que, sempre que se dá algum surto significativo de crescimento econômico- notadamente nos países menos desenvolvidos-, tendem a ocorrer, inicialmente, aumentos localizados de concentração de renda. Isso se dá porque o aumento da produção não se distribui uniformemente por todas as atividades produtoras. Ele decorre basicamente de dois processos: (1) da incorporação de novos fatores de produção, antes subaproveitados ou ociosos, e (2) do aumento da produtividade no uso dos recursos (isto é, melhor combinação e melhor gerenciamento). Todo crescimento econômico -e particularmente a industrialização- é um processo de desequilíbrio.
Só existe crescimento porque alguns estão produzindo mais a menores custos, seja porque aproveitam fatores antes não ou mal utilizados, seja porque os utilizam de forma mais produtiva. E os agentes que promovem o aumento da produção fazem-no porque esperam com isso alguma compensação. Que pode ser até alguma condecoração stalinista como aquela que, nos anos 30, fez o mineiro Stakhanov extrair mais carvão levado pelo entusiasmo socialista. Na vasta maioria dos casos, entretanto, o motivo será o direito de conservar para si uma boa parte dos ganhos. O lucro, em suma...
Nos países em fase de industrialização rápida, os indicadores usuais distorcem o quadro real, dando a impressão de maior desigualdade do que de fato ocorre, porque aumenta o grau de monetização da economia, e muitos bens e serviços que antes eram objeto apenas de transações "in natura" passam a ser computados nas estatísticas. Outro fator, geralmente mal interpretado, é o crescimento urbano. Marx esbravejava contra a idiotia da vida rural e propunha brigadas agrícolas- o que, sob a forma dos "sovkhoses", fez grandes estragos na agricultura soviética... E há ainda o problema do excessivo crescimento populacional.
Há que distinguir dois problemas: o da assistência aos necessitados (o que corresponde à caridade, em termos religiosos, ou à solidariedade) e o do aumento da capacidade produtiva dos menos habilitados. A caridade é praticada em todas as sociedades decentes, mas -dependendo de como é feita, e por quem- gera vícios difíceis de corrigir: vagabundagem, desmotivação, perda de auto-respeito. É o que acontece com o assistencialismo burocrático.
O aumento da capacidade produtiva dos menos habilitados é a única solução duradoura. Começa a fazer-se, antes de mais nada, pela educação e qualificação profissional e continua através dos mil e um mecanismos de financiamento, informação, assistência técnica etc. que dão ao indivíduo os meios de desenvolver as suas atividades econômicas. Sob esse aspecto, não há como negar que o Brasil, desde o princípio dos anos 70, ficou muito atrasado por comparação com os "Tigres Asiáticos". Foi o velho corporativismo, que, em vez de priorizar a educação básica, levou quase todos os recursos da União para as universidades públicas, subsidiando indiretamente a malandragem da UNE. O desenvolvimento da capacidade produtiva requer, para ser eficiente, o ambiente competitivo do mercado e da livre iniciativa. É uma escola dura, que castiga os ineficientes e premia os eficientes.
No caso brasileiro, é preciso considerarem-se quatro complicadores: 1) a inflação crônica, que roubava renda de todos os que não tinham moeda indexada; 2) a ineficiência abismal do aparelho do Estado; 3) o nível predatório da tributação; e 4) a sobrecarga demográfica. Já estamos com uma carga tributária de 31% do PIB, e, quando se pensa que a informalidade pode estar, segundo algumas fontes, perto de 50%, vê-se o peso da boçalidade tributária em cima daqueles que fazem parte da economia regular. Quanto ao crescimento populacional, basta lembrar que, de 1950 para cá, uns 100 milhões de habitantes foram acrescentados aos pouco mais de 18 milhões que então moravam nas cidades. O crescimento global depende diretamente da capacidade de poupança e formação de capital -outro segredo simples dos países asiáticos, onde taxas de poupança de 30% a 40% são usuais.
O distributivismo demagógico come a semente, em vez de plantá-la. No primeiro momento, parece ótimo, mas, com o tempo, resulta num atraso cumulativo para todos. No Brasil, nossa distribuição foi ao contrário: os privilegiados foram os "carentes corporativos" entrincheirados na burocracia, nas estatais e nas indústrias protegidas por reservas de mercado. Em cima disso, clérigos que deixaram de acreditar em Deus querem recuperar pela demagogia o que a perda da fé levou para as seitas. Isso os leva a hostilizar o lucro, o empresariado e o capitalismo, que representam precisamente o combustível, o motor e o sistema indispensáveis à fabricação de riqueza.

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