São Paulo, domingo, 29 de dezembro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A permanente diferenciação

MIRIAM CHNAIDERMAN
ESPECIAL PARA A FOLHA

A presença da psicanálise nos meios de comunicação tem levado a muitas discussões: alguns psicanalistas continuam achando que devemos preservar nossa tela branca para permitir a projeção de fantasias de nossos analisandos, outros pensam que a psicanálise é atemporal, o inconsciente não tem nada a ver com o que se passa à sua volta e, portanto, qualquer demanda de intervenção fora do consultório só poderia ser feita de um outro lugar que não o de psicanalista.
Maria Rita Kehl é uma psicanalista que se faz presente nos meios de comunicação. Mostra que o inconsciente está sujeito aos ideais que cada contexto sociocultural impõe, transformando as formas de recalque.
Maria Rita se fez presente por meio de seus poemas, por meio de seus escritos, já foi roteirista de curta-metragem. Tem uma singular agilidade no contato com o mundo à sua volta. Sua coletânea de ensaios "A Mínima Diferença" (lançado agora pela Imago) mostra-nos uma psicanalista sensível às mudanças de lugares imposta pela contemporaneidade, revelando que, a partir de diferentes demandas que nos são feitas do lugar de psicanalistas, podemos ir muito além de um "Freud explica". Questão, aliás, que discute com bastante propriedade em um dos ensaios, "Psicanálise, Ética e Mídia".
Maria Rita é poeta também, apaixonada por literatura e cinema. Mostra-se "antenada". Esse livro é resultado de intervenções as mais diversas, em espaços os mais diversos. Além dos textos publicados nesse caderno, há intervenções nos encontros promovidos pela Funarte (Fundação Nacional de Arte), conferências proferidas em diferentes Estados, em diferentes contextos -Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Sociedade Psicanalítica Iraci Doyle do Rio de Janeiro, encontros de cinema acontecidos no MIS (Museu da Imagem e do Som). Tudo isso mostra uma abertura bastante rara entre psicanalistas. E já é uma tomada de posição no movimento psicanalítico.
Parece que tudo isso assusta a própria autora, que o tempo todo precisa enquadrar sua curiosidade nos modelos consagrados da teoria psicanalítica. É como se temesse o espalhamento de sua sensibilidade e precisasse enformá-la.
Isso nos leva a viajar com suas ricas análises, seja de romances, novelas, seja de filmes, e depois a uma "cortada" que procura, a todo custo, uma retaguarda na teoria.
Já na apresentação, Maria Rita Kehl faz toda uma crítica à noção de identidade, segundo ela, "próteses subjetivas produzidas nas sociedades de massas", a busca de uma identidade definida por qualquer pertinência seria um dos modos contemporâneos de alienação: a produção de identidade seria "um artifício protetor de nossa solidão subjetiva diante do enigma do desejo".
Será que Maria Rita Kehl não cai exatamente no que critica, ao tomar como axioma o a priori lacaniano da "linguagem como destino", ao trabalhar com a noção lacaniana de desejo, organizado por uma ordem fálica? E como conciliar essa crítica com sua afirmação, no último ensaio, de que o psicanalista é desencarnado, não tem corpo, ocupa o lugar do morto?
Baseada no conceito freudiano de "narcisismo das pequenas diferenças", Maria Rita vai buscar as "mínimas diferenças que separam os campos masculino e feminino na literatura, no cinema e no comportamento cotidiano".
Há, constata, em nossos dias, a redução da diferença a mínimas diferenças, "ameaçando o narcisismo, mas facilitando o diálogo". Mas as mínimas diferenças, se ligadas ao narcisismo das pequenas diferenças, podem levar à intolerância e à barbárie, nos ensinou Freud. Ética não se confunde com consciência moral, nos ensina a psicanálise.
Maria Rita constata uma "indiscriminação nos campos masculino e feminino" devido a um "relaxamento na repressão". Pergunto eu: trata-se de uma indiscriminação ou da necessidade de repensar os lugares, de abrir-se para diferenças sexuais não mais binárias, homem-mulher? A montagem de corpo erógeno (já escrevi sobre isso em ensaio sobre Michael Jackson) leva a repensar tudo isso...
Talvez pudéssemos falar que hoje há um movimento de diferir permanente, algo sempre móvel. Perturbador movimento vertiginoso dos mundos de hoje. Maria Rita Kehl sabe disso.
Talvez pudesse deixar de temer o inebriamento e se deixar perder, sem precisar afirmar tanto, a cada encantamento, seu lugar de psicanalista.

Texto Anterior: Um gênio duro de aguentar
Próximo Texto: A intensidade do pecado
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.