São Paulo, domingo, 29 de dezembro de 1996
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A intensidade do pecado

LUIS BUENO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em 1976, no texto com que a editora apresentava o livro de Luiz Costa Lima sobre Cornélio Penna, o romancista aparecia descrito como "escritor da maior importância até hoje condenado a dormitar nas estantes da memória nacional para daí ser retirado nos aniversários de morte e outras efemérides". Passados 20 anos, essa condenação não se atenuou. Ainda muito esquecido, nem nas efemérides seu nome tem sido lembrado -nem neste ano, em que se completa o centenário de seu nascimento. Sua obra, à exceção do primeiro romance, "Fronteira" (Ediouro), não tem sido reeditada.
Embora essas coisas não se expliquem com facilidade, não é difícil apontar algum motivo que tenha prejudicado o seu prestígio literário. Seu destino, nesse sentido, foi o mesmo de outros autores importantes do período, como Lúcio Cardoso, Dyonélio Machado, Otávio de Faria ou Cyro dos Anjos. Todos fizeram sua estréia literária nos anos 30, época que acabou ganhando em nossa memória cultural uma imagem bastante estereotipada: a do domínio do romance social de corte regionalista.
Recentemente, Wilson Martins (em "O Globo", 6/11/1996) reiterou essa visão dominante sobre o período quando, ao tratar de "O Encontro Marcado", de Fernando Sabino, afirmou que, "para perceber o que o romance de Sabino representava como novidade (depois da primeira novela de Clarice Lispector, que passou despercebida), basta lembrar que, em 1956, Guimarães Rosa e Mário Palmério prolongavam a literatura sertaneja e o regionalismo convencional". Há aí a clara sugestão de que apenas a partir de Clarice Lispector se forjou no Brasil uma literatura alternativa ao regionalismo.
Trabalhando num espaço que corria paralelamente a esse regionalismo, romancistas como Cornélio Penna acabaram como que atropelados por uma linha histórica da moderna ficção brasileira que os excluía de seu cânone. No caso específico do autor de "A Menina Morta", acresce-se ainda o fato de ele ter se identificado como católico. É inegável que nos meios intelectuais brasileiros não é rara a confusão entre "catolicismo" e "carolismo". É certo que seus personagens vivem à exaustão um clima intenso de pecado. São criaturas de exceção, com uma vida interior tão profusa quando estéril. Profundamente mergulhados em si mesmos, suas ações externas, em geral pouco desenvolvidas, carecem de motivação racional. São seres que vivem numa margem indefinida entre a loucura e a lucidez, numa busca inútil de paz, de realização, vendo grandes promessas de felicidade e se frustrando em seguida, ao perceber que essas promessas são falsas, porque nada neles mesmos mudou.
Mas qual é a natureza do pecado que atormenta tanto essas criaturas? É o pecado da incapacidade de viver. Viver não só em si e consigo, mas também com o outro e nos outros. O ponto central da relação entre o catolicismo e a obra de Cornélio Penna se encontra exatamente aí. Trata-se do primitivo espírito cristão, que busca sua realização fora de si mesmo.
Não é outra a substância de "Fronteira". É a história de Maria Santa, que morre às vésperas de revelar ao mundo sua santidade. Trata-se de uma santidade mal dirigida pelas mãos tirânicas de tia Emiliana, dentro de um universo religioso todo feito de proibições e formalidades. Isolada em um casarão mineiro de Itabira, sem contato com o movimento de vida da pequena cidade, Maria Santa consome a si mesma e a sua santidade, por não dar a ela real existência.
Nos livros seguintes, "Dois Romances de Nico Horta", de 1939, e "Repouso", de 1948, esse processo permanece. Os protagonistas, consumidos pela inquietação de si mesmos, passam a vida toda sem conseguir assumi-la efetivamente. O casamento, nos dois romances, parece ser o espaço da possibilidade do contato com o outro e, portanto, com a vida. No caso de Nico Horta, entre duas mulheres, aceita a imposição da mãe para casar-se com Maria Vitória. A noite de núpcias acaba funcionando para ele como uma espécie de revelação de possibilidade de entrada na vida. Mas, no dia seguinte, o suicídio de Rosa, a quem preterira, joga-o de novo na compreensão de seu próprio autocentramento, o que o acaba conduzindo à morte.
O casamento é também incapaz de libertar as vidas de Dodote e Urbano, de "Repouso". Sua união nunca se efetiva inteiramente. São duas almas inquiridoras e ensimesmadas que jamais se encontram e jamais encontram a vida. Após a morte de Urbano, Dodote se descobre grávida. O nascimento da criança, que jamais andará, paradoxalmente representará para Dodote, se não o alcance da paz, ao menos um repouso. E o que é esse repouso? É, finalmente, na vida dessa mulher, o voltar-se para o outro, a distração de si mesma.
Em 1954 Cornélio Penna publicaria, pela José Olympio, um dos romances mais significativos da moderna literatura brasileira, "A Menina Morta". Com o mesmo clima dos romances anteriores, este ganha em complexidade. Para além dos pesadelos individuais -que não cessam, até se multiplicam- está colocada uma situação coletiva. A fazenda do Grotão, em meados do século passado, no Vale do Paraíba, vive um momento de latência de uma decadência irremediável. A morte da filha mais nova do dono da fazenda atualiza essa decadência. A menina atraía para si a capacidade de amor de todos. Com sua ausência, ganha força o alheamento em relação ao outro e os ódios fermentam com grande intensidade. A adolescente Carlota que, com a morte do irmão mais velho e do pai, além da retirada da mãe, terá o encargo de administrar a fazenda, abraçará com todas as forças sua decadência.
Aspecto fundamental desse livro é a maneira pela qual o romancista aborda a escravidão. Mais do que descrever o sofrimento do negro, o que ele faz surgir é um sofrimento moral enorme, capaz de determinar mesmo o fim do Grotão. Os ódios ali acumulados e a cegueira dos senhores, incapazes de perceber o sofrimento dessas pessoas, são o veneno que se infiltra naquele ambiente, o pecado que condena toda a fazenda. Seria a menina morta a única a compreender a dor desses homens e mulheres -e sua morte a impossibilita de fazer aos outros ver essa dor.
Carlota, numa das cenas mais impressionantes, sai durante uma noite de insônia e se depara, no terreiro, com um negro no castigo. Por um breve instante ela entrevê, com horror, um drama e um homem, e se espanta ao pensar que a menina morta era a única de fato a ver inteiramente dramas e homens entre os escravos. Carlota toma, assim, vaga consciência de que essa sua incapacidade -assim como a de todos ali- criou uma situação sem volta. É coerente, então, sua decisão de desistir de dar continuidade ao Grotão, recusando-se a se casar e gerar novos herdeiros.
Não se pode, no entanto, deixar de notar outros elementos fundantes do romance de Cornélio Penna. Embora, como já se disse, sua obra corresse paralelamente ao regionalismo, ela não está isenta da exploração do especificamente brasileiro e, em certa medida, regional. As fantasmagorias de seus personagens encontram-se em total consonância com o ambiente em que vivem. Em seus romances sombrios, estranhos mesmo, Cornélio Penna, criando esse mundo incompleto, decadente ainda antes de se realizar completamente, aponta para a vida. Ler esses livros é, mais que descobrir um autor brasileiro significativo, repensar a dinâmica da própria tradição literária brasileira em nosso século.

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