São Paulo, domingo, 29 de dezembro de 1996
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A angústia da dependência

FÁBIO LUCAS
ESPECIAL PARA A FOLHA

A fisionomia da dependência cultural pode ser buscada nos diferentes aparelhos em que circulam os comandos ideológicos. Por exemplo, na mídia e nas universidades.
É sabido que a ideologia consiste em transformar em caráter de "natureza humana" a necessidade puramente histórica, transitória, de um modo de produção. Pode repousar como uma sombra confusa, uma imagem obscura na consciência, como se fosse uma visão do mundo implícita e enganosa. É dessa atmosfera de obscuridade que a dominação extrai seu sustento.
Está em discussão o destino e o formato das universidades, experiência mais ou menos recente no Brasil e, sob muitos aspectos, malograda, pois não criou uma geração de cientistas para repensar as tarefas tecnológicas do país, nem se caracterizou pela renovação dos estudos das humanidades.
O "provão" se mostrou inadequado para medir o produto que a universidade oferece ao público, em face de seus custos sociais. O governo e a UNE (União Nacional dos Estudantes), polarizados, militaram em duplo equívoco: o governo, na vã tentativa de quantificar a qualidade, em vez de empenhar-se pela qualificação da quantidade; a UNE, ao externar o temor de os estudantes se tornarem o ponto de ruptura do falso. O vício é metodológico. O valor cultural é um conceito que não está apto a passar pelo teste da verdade, mas pode ser reconhecido na alternativa entre o autêntico e o falso.
Acompanhemos alguns exemplos de colonialismo na área das letras nessa era de degeneração da cultura e de anarquia de valores. É precisamente aquela área que mais interessa, porque na tradição ocidental em que nos inserimos a herança do espírito está associada à língua e à literatura. No dizer de Ernst Robert Curtius, "nada pode substituí-la. Nem filosofias, nem técnicas, nem sistemas políticos e econômicos".
A reminiscência (Mnemósica), segundo o mito grego, é a mãe das musas. No dizer de Viatcheslav Ivanov, "a reminiscência é um princípio dinâmico; o esquecimento é cansaço e interrupção do movimento, declínio e retorno ao estado de uma relativa indolência".
Vê-se que o ensino universitário, entre nós, se deblatera entre dar ao estudante o acesso ao passado literário, fundador de nossa expressão escrita, ou acompanhar a vida social da literatura.
No primeiro caso, os resultados têm-se mostrado modestos se comparados com os esforços dos autodidatas do século passado. Somente agora, sob a proteção de algumas editoras universitárias, aparece a revisão do "corpus" literário herdado, mesmo assim com certa timidez. Exemplo: finda-se o ano de 1996 e as celebrações do terceiro centenário da morte de Gregório de Matos têm-se mostrado inexpressivas. Nem sequer se organizou uma comissão de especialistas para que, à luz dos variados códices da obra do poeta, se estabeleça uma coleção mais confiável dos seus poemas. Problemas de ecdótica e de crítica textual estão por ser resolvidos. Igual comentário caberia à passagem do centenário do nascimento de Cornélio Pena, a respeito do qual se nota incompreensível vazio, nos jornais e nos cursos de letras.
Questiona-se hoje a validade do movimento modernista, à medida que interrompeu um processo de formação de um projeto literário brasileiro, advindo dos árcades, do romantismo e do realismo, que encontrava em Raul Pompéia, Lima Barreto, Augusto dos Anjos e Gilka Machado traços de modernidade e de avanço que foram desprezados. Pompéia, porque suas "Canções em Metro" denunciam a crise da metrificação; Lima Barreto, porque inclui a população periférica ao centro da narrativa; Augusto dos Anjos, porque ousa poetizar o idioma da ciência; e Gilka Machado, porque outorga à mulher uma voz autônoma na poesia. É a tese sustentada por Heitor Martins, que observa: "A invasão futurista de 1922, de certa maneira, provoca uma implosão da modernidade criada dentro do projeto literário brasileiro tradicional, que vimos descrevendo, substituindo-a pela importação das vanguardas. A modernidade deixa de ser uma resultante do progresso local para ser uma união hipostática com o progresso alheio".
Quanto ao segundo caso, de os institutos acadêmicos tentarem reproduzir mecanicamente a vida social da literatura, estampada nos jornais, é só observar que a mídia, de certo modo, comanda algumas deliberações universitárias. Assim, basta que um jornal de grande circulação insista em certos autores, que aqui aportam precedidos de recomendação externa, para que professores, de forma acrítica, passem a tornar obrigatória a leitura dos beneficiados pela publicidade. Desta forma, não se forma um cânone literário derivado do processo brasileiro.
Boa parte desses mestres passa por contrabandistas de um saber desvalorizado, pela pura incapacidade de ir às fontes nacionais. Macaqueiam a coreografia da imitação cega, associando-se à elite que dança o minuto da fartura numa sociedade terrivelmente desigualitária. Hoje, a senha para ingressar nesse baile é a globalização, numa espécie de embriaguez pela simples contemplação do rótulo da garrafa.
Consultando a lista das obras a serem lidas pelos pós-graduandos da USP, encontramos uma avalanche de textos sobre a "pós-modernidade": "La Misère du Monde", de Pierre Bourdieu, "The Closing of the American Mind", "Teoria das Inteligências Múltiplas" (A. Gardner) e -pasmem!- "Inteligência Emocional", de Daniel Goleman. Só faltam Lair Ribeiro e Paulo Coelho.
Reputados professores da USP tornam obrigatória a seus alunos a leitura da equivocada obra de Harold Bloom acerca do cânone ocidental, um trabalho certamente dirigido ao público estadunidense. Enquanto isso, os estudantes brasileiros daqueles mestres jamais ouviram falar de Inocêncio, de Sacramento Blake ou até mesmo de Otto Maria Carpeaux e Rubens Borba de Moraes. Especializam-se os alunos em notícias de jornal bafejadas pela aura de modernização ou de "pós-modernidade".
Como se sabe, Inocêncio Francisco da Silva, auxiliado por Pedro Venceslau Brito Aranha, J.J. Gomes de Brito e Álvaro Neves, fez o "Dicionário Bibliográfico Português - Estudos Aplicáveis a Portugal e ao Brasil" (1858-1923) em 22 volumes. Em 1922, Martinho da Fonseca publicou os "Aditamentos" e, em 1972, Ernesto Soares publicou a "Guia Bibliográfica". Já Augusto Victorino Alves Sacramento Blake publicou no Rio, no período 1883-1902, pela Imprensa Nacional, o "Dicionário Bibliográfico Brasileiro", em sete volumes (reimpressos fac-similados em 1970, pelo Conselho Federal de Cultura). Quanto a Otto Maria Carpeaux, produziu para o Serviço de Documentação do MEC, em 1949, a "Bibliografia Crítica da Literatura Brasileira", que teve, a seguir, várias edições revistas e aumentadas. Finalmente, Rubens Borba de Moraes nos deu, em 1969, a "Bibliografia Brasileira do Período Colonial - Catálogo das Obras dos Autores Nascidos no Brasil e Publicados até 1808".
Para que serve o cânone? Em termos gerais, para garantir uma tradição. Curtius assevera que a palavra ocorreu pela primeira vez no século 4º d.C., no sentido de "relação de escritores". No dizer de H. Oppel, na obra "Kannon", foi o grande David Ruhnken (1723-98) que introduziu o conceito de cânone na filosofia. Podemos dizer que esse conceito ampara a versão da cultura como recordação iniciadora.
Prosseguindo a informação sobre a dependência, verifica-se que o estado de subserviência à cena externa se manifesta em microdecisões do cotidiano, carregadas de significado. Retratam o espírito de alienação em que se encontra a consciência ingênua. É o que tivemos durante o período do regime militar, quando se concedeu o maior prêmio literário já havido entre nós a Jorge Luis Borges, que aqui esteve para cortejar os agentes do despotismo brasileiro. Nossos contribuintes viram os seus impostos convertidos em premiação de um escritor que não pronunciava nem uma palavra sequer em língua portuguesa, mas cultivava com requinte e esmero, o seu inglês ou o seu francês.
Escritores jejunos de nossa cultura, como Borges e seu amigo Bioy Casares, recebem impensado apoio da mídia, que lhes oferece todos os canais, geralmente interditos aos escritores brasileiros.
Borges teve memorável passagem pelo Chile de Pinochet e concedeu desastrada entrevista à revista "Ercilla" (15/10/1975), naquele período em que autores como García Márquez, Vargas Llosa e Julio Cortázar eram censurados. A revista, aliás, registra o fato com humor funerário: "Y en Chile García Márquez será condenado a 'Cien Años de Soledad', Mario Vargas Llosa no contará más su 'Conversación en la Catedral' y Julio Cortázar no podrá sortear los coches de la 'Autopista del Sur' para cruzar la cordillera...".
Borges, na entrevista, sustenta teses estúpidas como: os negros constituem raça inferior, pois os europeus foram à África e dominaram os seus povos. E estes não foram capazes de ir à Europa e submeter os europeus. A América Latina? Não produziu até hoje coisa que valha a pena: "Podría borrarse de la historia y casi no se notaría". E como não poderia deixar de ser, conclui que "norteámerica si", pois à humanidade fariam falta E. A. Poe e W. Whitman.
Curiosamente, um aluno brasileiro, Antônio Fornazzaro, nos Estados Unidos, ao notar sua completa ignorância da literatura brasileira, ofertou-lhe um exemplar de "O Alienista", de Machado de Assis... em inglês.
Voltando ao prêmio a Borges: não consta que a feroz ditadura argentina tenha nem sequer sonhado em distinguir qualquer autor brasileiro. Mais uma vez comportamo-nos como macacos perante a intelectualidade portenha. O complexo de inferioridade tem-nos levado a situações constrangedoras.
Reitera-se que as letras perderam a sua aura em nosso tempo e que o escritor, na era da massificação, sofre um processo de hibernação. Revistas e jornais de larga circulação parecem sucursais de equivalentes norte-americanos. Praticamente excluíram os autores brasileiros dos destaques dos chamados cadernos culturais. Estes, na verdade, se tornaram refúgio das estrelas e notícias do "show business", confundindo cultura com espetáculo.
É bem verdade que os dois grandes jornais do Rio de Janeiro voltaram a oferecer semanalmente os suplementos literários, exemplo que esperamos seja seguido em São Paulo, que dispõe de um suplemento aos sábados.
Que os veículos de comunicação de massa estejam cerceados pela doutrina consumista ainda se entende. Também eles são reduzidos cada vez mais a mercadorias e forçados a seguir as leis do mercado. Mas a Academia Brasileira de Letras, que ostenta notável patrimônio proveniente tanto do setor privado quanto do público, não tem dado mostras de preocupação cultural. Onde estão as publicações acadêmicas, tão valiosas no passado? Parece que se vai esgotando a harmonia entre a mídia impressa e a literatura. Por força do conteúdo efêmero e volátil do noticiário jornalístico, privilegiam-se subgêneros da produção narrativa, de imediato impacto sobre o público, como a biografia, a reportagem, o depoimento pessoal, as memórias. Enfim, toda uma textualidade limítrofe da historiografia. A Academia Brasileira de Letras esteve envolvida, não faz muito, num dilema entre premiar as recordações de um político e a biografia de um empresário. Nenhuma obra de criação esteve sob escrutínio.
A Academia, como instituição literária, deveria se tornar um núcleo de resistência à avalanche vulgarizadora da cultura e ao destroçamento das universidades. Jogar seu prestígio na instauração de cursos e prêmios que estimulassem os escritores e abrissem canais para os iniciantes. Precisaria firmar um padrão de excelência.
A missão do escritor, parece-nos, consiste em reconquistar o seu lugar no grande curso da cultura. A formação de um cânone moderno dependerá muito da disposição entre os escritores de adotar um processo brasileiro de literatura. Isto significa: primeiro, conhecimento de nosso passado literário, pois é na continuidade que o cânone se cristaliza; segundo, prática de intercâmbio cultural com as outras nações, de tal modo que as agregações externas sejam enriquecimento e não servidão; terceiro, despojamento da consciência ingênua, que se deslumbra com a presença do estrangeiro, a ponto de atribuir qualidade àquilo que não passa de diferença.
Conforme deixamos expresso na obra "Vanguarda, História e Ideologia da Literatura", ao distinguirmos a vanguarda autêntica da falsa, esta funciona como elo de um circuito que alimenta a causação circular da dependência, transformando o nacional em multinacional e tornando um triunfo aquilo que não passa de ocasional embaraço histórico, de transitório fruto de um modo de dominação.

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