São Paulo, domingo, 29 de dezembro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Para combater o maior dos crimes políticos

FÁBIO KONDER COMPARATO

Na fase atual de nossa história política, a impostura dos governantes é muito mais desmoralizante do que a corrupção material.
Apesar das recentes tentativas de reedição do "rouba, mas faz" como slogan eleitoral, a ladroagem pública é hoje claramente sentida como grossa imoralidade em todas as camadas da população. Creio haver, até, maior repulsa popular pelo peculato praticado com requintes de alta tecnologia do que pela gatunice reles do pobre funcionário público. O "suje-se gordo" do conto de Machado de Assis passou de moda.
A falsidade política ou sedução demagógica, ao contrário, vai se consagrando como uma espécie de esporte nacional, em que os exímios são festejados como heróis do povo.
Em boa parte da classe política, acanalhada por "muitos anos de janela", chegou-se à inversão total de valores: a hipocrisia é tida como qualidade natural e, portanto, necessária, enquanto a retidão aparece como anomalia, suscitando sempre a leve suspeita de disfarçar alguma refinada malícia.
Collor, afinal, só caiu em desgraça quando se viu envolvido no esquema de corrupção de seu tesoureiro de campanha. Enquanto representava, ainda que grosseiramente, a pantomima da caça aos marajás, a galera aplaudia, sob o sorriso irônico dos profissionais experimentados no ofício.
Muitos outros exemplos podem servir para a ilustração da tese. Limitemo-nos, para maior clareza, ao assunto do momento: a emenda permissiva da reeleição dos chefes de Executivo no período imediatamente seguinte.
Por ocasião do plebiscito de 1993 sobre a forma de governo -presidencialismo ou parlamentarismo-, um único partido fechou questão a favor do sistema parlamentar: o PSDB. Durante a campanha, as mais sólidas críticas desse partido ao "presidencialismo imperial" brasileiro foram expostas por dois eminentes intelectuais: José Serra e Fernando Henrique Cardoso.
Entramos, logo depois, em período de revisão constitucional. A oligarquia, inquieta, assistia à ascensão aparentemente irresistível de um "outsider": Luiz Inácio Lula da Silva. O Congresso apressou-se, então, em aprovar a emenda de revisão nº 5, que reduziu o mandato presidencial para quatro anos, sem admitir, porém, a reeleição, incluída na proposta de emenda. Estávamos em junho de 94, quando o candidato da oposição reunia mais de 40% das intenções de voto e o Plano Real ainda era uma grave interrogação.
Em poucos meses, deu-se uma reviravolta na novela. O antigo senador, que se distinguira no combate ao presidencialismo, elege-se presidente.
Com a eleição, converte-se de súbito, como Paulo no caminho de Damasco, à religião da qual fora o mais encarniçado inimigo. Já não aceita apenas o regime, com todos os abusos que se habituara a denunciar, tal como a transformação das medidas provisórias em instrumento ordinário de governo.
Vai mais além e propõe abolir o freio que todas as nossas Constituições republicanas impuseram à ambição presidencial: a impossibilidade de reeleição por dois mandatos consecutivos. Não se esquece, porém, de acrescentar à proposta um pormenor de somenos: ele próprio, atual presidente, patrocinador da emenda reelecionista, poderá dobrar-se ao sacrifício de se candidatar à reeleição, desde que, é claro, continue a merecer o apelo popular, conhecida fórmula do jargão político com que se alude ao apoio da oligarquia.
Há pouco tempo, a idéia de um plebiscito era rejeitada pelo nosso chefe de Estado sob a qualificação desprezível de "fujimorização do país". Agora, porém, ele já aceita o plebiscito, porque "o povo tem pressa" e há outros assuntos mais importantes a resolver...
Aí está. Acabamos de transformar a Constituição em uma espécie de suprema medida provisória, livremente mutável segundo os interesses conjunturais dos homens no poder. É a inversão do Estado de Direito.
A falsidade demagógica, como enfatizaram os clássicos comentadores da decadência ateniense, arruina as democracias, muito mais que a violência ou a corrupção. Estas últimas são moléstias externas, que atingem, por assim dizer, o corpo do organismo político; aquela, ao contrário, destrói a sua alma, que é a reta vontade popular.
Contra esse crime político -o maior de todos em regime democrático-, a lei penal é instrumento ineficaz, porque inadaptado à sutileza do comportamento delituoso. O remédio específico é um só: a educação política do povo. E esta, numa sociedade de massas, só pode ser desenvolvida eficazmente pelos meios audiovisuais de comunicação telemática, sobretudo as rádios e televisões educativas. O verdadeiro governo democrático, hoje, consiste em educar politicamente o povo, por meio do povo e no interesse do povo.
Oxalá tenhamos a ventura de ver surgir, já em 1997, alguma instituição capaz de lançar, pelos meios de comunicação social de todo o Brasil, uma campanha nacional educativa pela decência na vida pública.
É a mais nobre missão política deste final de século.

Texto Anterior: Uma revolução silenciosa
Próximo Texto: Vergonha internacional; Esclarecimento; Decisão política; Modelo cruel; Um a menos; Imposto de Renda; Boas festas
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.