São Paulo, sexta-feira, 2 de fevereiro de 1996
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'Flerte' tenta reconciliar 2 faces de Hartley

AMIR LABAKI
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Hal Hartley ("Confiança") sempre separou seus curtas de seus longas-metragens. Em Cannes-92, chegou a me dizer que preferia o primeiro formato, pela maior liberdade de experimentação. De fato, são notáveis as diferenças entre, por exemplo, o breve e ultraelíptico "Ambition" (1991) e o fabulismo contemporâneo e teatral de "Amateur" (1994).
"Flerte" tenta agora reconciliar os dois Hartleys. É um longa que se desenvolve através de três curtas. Este cruzamento entre os formatos tem sido a base de muitas das experiências cinematográficas recentes mais interessantes, de "Pulp Fiction" e "Sem Fôlego" a "Caro Diário" e "Antes da Chuva", resguardadas as evoluções bastante distintas de cada um.
Em "Flerte", uma mesma situação de conflito amoroso, mantendo inclusive grande parte dos diálogos, é encenada em três das chamadas cidades mundiais: Nova York, Berlim e Tóquio. Mais uma vez, Hartley revisita seu assumido tema central: pessoas tomando decisões. Aqui, ele procura adaptá-lo a estes diferentes contextos e tornar crescentemente mais complexa a variação narrativa.
O esqueleto dramático é quase singelo: num casal em crise, um dos membros antes de viajar checa o engajamento do outro. Este sai, um triângulo se revela, a tensão aumenta, um revólver aparece, uma bala de raspão explicita num rosto o dilaceramento da alma.
Em Nova York, a narrativa é cristalina, o triângulo é heterossexual e tudo se apresenta segundo o típico entrecho hartleyano. Em Berlim, muito mais importante do que a relação se tornar homoerótica é o fato de a narrativa tornar-se auto-referente (um coro de operários debate o dilema dramático e o artíficio narrativo).
Tóquio é o episódio em curto-circuito. O silêncio supera em importância os diálogos repetitivos, que Hartley aprendeu sobretudo com Harold Pinter. A curva da trama rompe radicalmente com as anteriores, condensando-se e esticando-se ao sabor de uma atmosfera ditada por um balé à moda butô. A auto-referência verbal cede espaço ao metacinema, com o próprio Hartley tornando-se um dos protagonistas.
"Flerte" nasceu como o curta nova-iorquino. O prestígio de Hartley na cena independente permitiu-lhe experimentar abertamente, ciente do esgotamento da fórmula "Confiança"/ "Simples Desejo"/ "Amateur". O cerebralismo, sua marca inequívoca, atinge aqui seu ápice. O preço, desnecessário, foi um radical sacríficio da emoção.

Filme: Flerte
Direção e roteiro: Hal Hartley
Estréia: hoje, no Espaço Unibanco

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