São Paulo, domingo, 4 de fevereiro de 1996
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O DOPING INVISÍVEL

SCOTT VEGGEBERG
DA "NEW SCIENTIST"

A caça a músculos mais fortes não conhece limites. Ela começou nos anos 50, quando halterofilistas russos e norte-americanos começaram a tomar injeções de esteróides. Na década de 80, a opção preferida pelos atletas sem escrúpulos já eram substâncias naturais, como o hormônio do crescimento.
E, agora, um novo elixir que, segundo boatos, confere resistência e tônus muscular imensos começa a surgir nos ginásios e academias. É conhecido como "fator de crescimento semelhante à insulina 1", ou IGF-1, devido a seu nome em inglês (Insulin-like Growth Factor-1). Praticantes da musculação e levantadores de peso estão loucos para consegui-lo.
Apesar da crescente reputação de poderoso agente anabólico, ainda não existem leis que controlem a venda de IGF-1 nos EUA ou na Europa. E os testes antidoping realizados nas competições esportivas ainda não visam essa substância.
"Dois ou três atletas famosos da musculação abriram o caminho para o uso do IGF-1. Usaram e tiveram resultados fantásticos", diz Peter Thorn, presidente da Federação Americana de Halterofilismo.
"O IGF-1 já está disponível por aí nos EUA", diz T.C. Luoma, editor-chefe da "Muscle Media 2000", revista de musculação partidária do uso de drogas para aumentar os músculos.
Segundo Luoma, ele é vendido em carros em Venice (Califórnia), e pacotinhos embrulhados em papel pardo contendo o IGF-1 são discretamente distribuídos nas academias do sul da Califórnia.
"A maioria dos praticantes da musculação 'tem um amigo que conhece um cara cujo primo consegue encontrar o IGF-1"', diz. E os pesquisadores de esportes acham provável que o IGF-1 esteja sendo usado para ajudar a musculação também na Europa.
Não por acaso, tudo isso acontece exatamente quando as pesquisas biomédicas com o IGF-1 estão prosseguindo a todo vapor. De alguns anos para cá, publicações médicas vêm divulgando milhares de artigos sobre o IGF-1.
Os pesquisadores esperam que o peptídeo (proteína) chegue a ser utilizado no tratamento de várias desordens, entre elas a doença dos neurônios motores e o nanismo.
Mas, ao mesmo tempo, está claro que nem todo o IGF-1 produzido pelas empresas de biotecnologia está chegando às clínicas. Os fabricantes contam que estão tendo de implantar complicados esquemas de segurança para impedir que a droga cara e escassa seja desviada para o mercado negro.
O IGF-1 não pode ser produzido numa garagem, com vidrinhos e conhecimentos superficiais de química colegial. É um peptídeo que ocorre naturalmente, composto de uma cadeia precisamente estruturada de cerca de 70 aminoácidos numa configuração única.
Seu nome vem do fato de cerca de metade de sua estrutura de aminoácidos ser idêntica à insulina. Ele consegue ligar-se frouxamente a substâncias conhecidas como receptores de insulina, além de ligar-se a seus próprios receptores, na superfície das células.
Assim como o hormônio de crescimento, o IGF-1 é essencial para o desenvolvimento normal. Os papéis biológicos dos dois estão intimamente interligados.
A visão tradicional é que o hormônio do crescimento é produzido pela glândula pituitária, percorre o sangue e estimula o fígado para que libere peptídeos IGF-1.
Esses peptídeos então se dispersam e estimulam o crescimento e a divisão das células. Mas pesquisas recentes sugerem que o hormônio do crescimento também pode desencadear uma liberação mais localizada de IGF-1 em cartilagens, músculos e outros tecidos.
Durante o desenvolvimento normal, os efeitos do IGF-1 diferem muito de um tecido para outro. Nas células musculares, estimula a produção de proteínas e componentes celulares, enquanto mobiliza a gordura para ser usada como energia nos tecidos adiposos.
Em tecidos magros, o IGF-1 impede a insulina de transportar glicose através das membranas celulares. Portanto, as células precisam passar a queimar gordura para obter energia. Esse efeito explica por que pesquisadores estão testando o hormônio do crescimento, que estimula a produção do IGF-1, como droga emagrecedora.
Fortalecer as células musculares e, ao mesmo tempo, queimar gorduras soa como uma fantástica receita para o sucesso atlético. O problema é que nem tudo o que estimula o crescimento dos tecidos durante o desenvolvimento vai funcionar em adultos saudáveis e totalmente crescidos.
Nos últimos dez anos ficou claro que injeções de hormônio do crescimento ou de IGF-1 podem ajudar crianças com deficiências dessas substâncias a crescer até atingir uma altura normal.
O hormônio do crescimento também pode ajudar adultos com deficiência hormonal a perder gordura e a ganhar tecidos magros.
Segundo pesquisa de Daniel Rudman, do Centro Médico de Veteranos em Milwaukee, seis meses de hormônio do crescimento podem aumentar tecidos magros e reduzir gordura em idosos.
Já surgiram clínicas no México, na Suíça e nos EUA que vendem terapia à base do hormônio do crescimento -não para pessoas que tenham deficiências hormonais, mas para indivíduos saudáveis interessados em ficar mais fortes e sexualmente atraentes no outono de suas vidas.
Será que a decorrência lógica disso é que injeções de hormônio do crescimento ou de seu "criado", o IGF-1, poderiam beneficiar halterofilistas jovens?
É aqui que a verdade se mistura com anedotas e opiniões. Segundo Luoma, os usuários estão chamando o IGF-1 de "a coisa mais fantástica do mundo" para ganhar músculos e perder gordura.
Luoma admite que relatos desse tipo têm valor duvidoso. "Quem faz musculação a sério geralmente usa tantas drogas, que é quase impossível definir se os efeitos são decorrentes do IGF-1 ou não."
Apesar disso, cientistas afirmam que o IGF-1 poderia ser usado para estimular o crescimento muscular em adultos saudáveis.
O endocrinologista David Clemmons, da Universidade da Carolina do Norte (EUA), começou a levar a idéia a sério em 1993, quando impôs a quatro homens e três mulheres com idades entre 22 e 47 uma dieta suficientemente baixa em calorias para causar a decomposição dos músculos e outros tecidos, num processo conhecido como catabolismo.
Clemmons descobriu que podia proteger os músculos dando a eles uma combinação de IGF-1 e hormônio do crescimento. E a combinação se mostrou muito mais anabólica do que qualquer uma das substâncias isoladas, disse ele.
Ao que parece, os praticantes da musculação já estão cientes do trabalho de Clemmons. "A combinação de IGF-1 e hormônio do crescimento é praticada por alguns halterofilistas", diz Luoma.
Outros parecem preferir o IGF-1 ao hormônio do crescimento, porque é a substância que faz o trabalho do hormônio no corpo.
Fabricantes de IGF-1 querem se distanciar das afirmações de que ele tem efeitos anabólicos em atletas. Poucos estão interessados em ver o nome de um produto medicinalmente promissor prejudicado por histórias de abuso, como o hormônio do crescimento.
"Não há dúvida de que o IGF-1 funciona às mil maravilhas com ratos", diz John Ballard, diretor-administrativo da GroPep Proprietary, em Adelaide, fabricante australiana de IGF-1.
O problema é que não é muito específico. Quando o IGF-1 é injetado em ratos adultos, também faz crescer tecidos não-musculares, como timo, baço e rins.
E só porque o IGF-1 desacelera a progressão da doença dos neurônios motores, isso não significa que funcione pelo estímulo direto do crescimento muscular.
É possível que o mais importante seja a capacidade que o IGF-1 possui de fazer crescer novas fibras nervosas, renovando as conexões com as células musculares.
Além disso, a escassez e o alto preço do IGF-1 no mercado negro tornariam muito difícil a obtenção de quantidades significativas, para a maioria das pessoas.
Um único frasco contendo cerca de 0,1 miligrama de IGF-1 custa US$ 600 no mercado negro. Para produzir um efeito biológico, diz Ballard, seria preciso tomar 10 ou mais desses frascos diariamente, por um período prolongado.
Mas alguns especialistas esportivos, como Thorn, da Federação Americana de Halterofilismo, acham que existem atletas profissionais bem pagos, sem falar nos países sedentos por medalhas olímpicas, que teriam condições de manter um hábito tão caro.
É possível que o alto preço do IGF-1 tenha protegido muitos usuários dos perigos de overdose. Grandes doses de IGF-1 desencadeiam queda dramática no nível de açúcar no sangue, exatamente como uma overdose de insulina.
Ao prolongar a vida de células danificadas que morreriam no interior do corpo, o abuso de IGF-1 poderia, teoricamente, aumentar o risco de crescimento celular descontrolado e, portanto, de câncer.
O excesso de hormônio do crescimento já foi vinculado a efeitos colaterais, entre os quais altos níveis de açúcar no sangue, síndrome do túnel do carpo, crescimento excessivo de mãos e pés e maxilares excessivamente proeminentes.
Clemmons aconselha os atletas a não usar IGF-1 e hormônio do crescimento para aumentar a massa muscular devido a seu "acentuado perfil de efeitos colaterais".
A dose normalmente necessária para produzir um efeito anabólico sobre os músculos fica muito perto da zona de perigo. Entre os efeitos colaterais figuram paralisia dos nervos faciais e um aumento de fluidos que pode provocar um perigoso edema cerebral.
"Atletas que não querem abrir mão do abuso de anabolizantes devem continuar com a testosterona, mais barata e segura", diz Clemmons. "Dólar por dólar, você se dá muito melhor com esteróides."
Com uma exceção: na hora dos testes antidoping nas competições.
Isso porque, embora as autoridades esportivas já estejam começando a fazer testes para detectar o hormônio do crescimento, os testes para IGF-1 ainda se encontram em fase de planejamento.
O Comitê Olímpico Internacional proibiu o uso de qualquer hormônio peptídeo nos esportes, mas ainda não dispõe de um teste capaz de detectar hormônio do crescimento, muito menos o IGF-1.
"Não há dúvida de que o IGF-1 já está na tela do nosso radar, mas muitas outras coisas também estão", diz Donald Catlin, diretor do Laboratório Olímpico de Análises Clínicas da Universidade da Califórnia, em Los Angeles.
Uma delas é o albuterol, medicamento usado no combate à asma que possui efeitos anabolizantes, mas que desaparece do fluxo sanguíneo muito mais rapidamente que os esteróides.
Hormônio do crescimento e IGF-1 são difíceis de detectar porque são peptídeos e, diferentemente dos esteróides, não são facilmente excretados na urina.
As autoridades relutam em adotar testes sanguíneos, que forneceriam um indicativo melhor ao abuso de hormônios e de IGF-1, porque os atletas se opõem a essa abordagem invasiva.
Outra questão em pauta é determinar os níveis desses compostos que poderiam ser caracterizados como indicativos de abuso. Os níveis naturais de IGF-1 e hormônio do crescimento variam no decorrer do dia e de um indivíduo a outro.
Autoridades esportivas admitem que, em vista da busca cada vez mais sofisticada de drogas para incrementar o desempenho dos atletas, a utilidade dos testes, mesmo os aleatórios, é limitada.
Mas, segundo Wade Exum, diretor de controle e testes de drogas do Comitê Olímpico Americano, os atletas conhecem quem usa drogas. "Com o tempo, os próprios atletas vão começar a expor esses fraudadores".

Tradução de Clara Allain

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