São Paulo, domingo, 4 de fevereiro de 1996
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LADY JANE

MARILENE FELINTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Nas notícias que chegam de Hollywood, o nome da atriz inglesa Emma Thompson se mistura ao de uma personagem: Elinor Dashwood, ou mesmo Emma Woodhouse, ambas criadas pela escritora inglesa Jane Austen (1775-1817), respectivamente nos romances "Sense and Sensibility" (1811) -"Razão e Sentimento", conforme tradução brasileira- e "Emma" (1816).
Emma Thompson enfrentou há pouco tempo a empreitada de adaptar "Sense and Sensibility" para o cinema. O filme, em que ela também atua no papel da protagonista Elinor Dashwood, ganhou em 21 de janeiro último o Globo de Ouro -prêmio oferecido pelos correspondentes estrangeiros em Hollywood- nas categorias de melhor drama e melhor roteiro adaptado. No Brasil, com o título de "Razão e Sensibilidade", tem estréia prevista para março.
O sucesso do filme, forte candidato a indicações ao Oscar, somado a outras recentes retomadas da obra de Jane Austen, tem alvoroçado a crítica internacional, que tece todo tipo de conjeturas para explicar o segredo do gosto contemporâneo por uma escritora oriunda do classicismo inglês.
Seu romance "Orgulho e Preconceito" foi transformado em bem-sucedido seriado de TV pela BBC de Londres; "Persuasão" também virou filme recentemente e "Emma" tem três versões sendo preparadas, além de estar na base do roteiro de "As Patricinhas de Beverly Hills".
Sejam quais forem as causas para um renascimento de Austen, é menos provável que se encontrem em algum aspecto temático ou formal de sua obra do que no espírito de sua época: o cânone clássico da ordem, do equilíbrio racional, do universalismo estético.
Seria temerário supor o que parece óbvio: que a presença revivida, entre nós, de um universo como o de Jane Austen (que privilegia acentuadamente as heroínas) seria sinal de que o mundo está se tornando cada vez mais feminino.
Dedução mecânica, que nada prova, a não ser que se confunda caricatura de feminilidade -manifestada na atual inflação de drag queens e travestidos de toda ordem- com feminilidade. O mundo não está mais feminino ou menos masculino do que sempre o foi -basta comparar, neste jornal, o número de mulheres e de homens que escrevem, o espaço ocupado por umas e outros.
Mulheres em duplicata
Em que estaria mais feminino o mundo? Pode estar mais lésbico. Mais feminino, não está. A não ser, também, que se confunda -conforme tudo indica- lesbianismo com feminilidade. Mulheres nunca se enrabicharam tanto por mulheres quanto hoje. O lesbianismo afinal saiu dos colégios para moças, dos esconderijos nos internatos femininos, para as telas do cinema, que estão lotadas de mulheres transando com mulheres, como se fosse a coisa mais natural.
Estilizou-se a imagem da mulher em duplicata em cima de uma cama. Mas às vezes a imagem dobrada é mera cópia que nada acrescenta: o lesbianismo está longe de contribuir para a conquista dos direitos civis das mulheres, ou para "feminizar" o mundo. Ele é importante, no máximo, para a consolidação das liberdades sexuais -que beneficia também os homens e tem, por isso mesmo, o consentimento deles. Para muitos homens, nada há de mais excitante do que a relação física entre duas mulheres, tão santificada por eles quanto a gravidez de suas esposas.
Até mesmo no mundo da delinquência juvenil do polêmico filme "Kids", o lesbianismo é tolerado como algo bonito -quando rapazes pedem a duas garotas que se beijem dentro de uma piscina-, enquanto um casal de homossexuais masculinos é ridicularizado e insultado pelos garotos na rua.
Ruínas sentimentais
Tampouco se pode afirmar que a redescoberta de Austen se deva a uma reavaliação feminista de certos casos controversos da literatura escrita por mulheres nos séculos 18 e 19 -escritoras das gerações seguintes a Jane Austen, destacadamente Charlote Bront‰ (1816-1855), acusavam-na de ter mentalidade estreita, ser convencional em religião e reacionária em política, de reprimir paixão e sexualidade. De fato, na literatura inglesa, posturas capazes de satisfazer expectativas mais feministas só seriam encontradas depois, a partir de escritoras como George Eliot (1819-1880) e, principalmente, Virginia Woolf (1882-1941).
Se a obra de Austen não se presta a superficiais revisões femininas ou feministas, que motor despertaria, enfim, o interesse por ela hoje senão uma espécie de "tristeza pós-imperial", como aponta o escritor Martin Amis (leia texto à pág. 5-5)? Nesse caso, o fenômeno estaria diretamente ligado à franca derrocada da monarquia inglesa e ficaria circunscrito à Inglaterra -não é à toa que tem como uma de suas porta-vozes exatamente a inglesíssima Emma Thompson, até pouco tempo casada com o não menos inglês ator e diretor shakespeariano Kenneth Branagh (que levou para o cinema, em 1993, a bobeira romântica "Much Ado About Nothing").
Solteiros e coitadas
Nascida em 16 de dezembro, na pequena vila de Steventon, condado de Hampshire, no sul da Inglaterra, Jane Austen escreveu seis romances, numa época em que mulher não assinava publicações. Os livros que publicou em vida foram lançados anonimamente. Só depois de sua morte, aos 42 anos, o público veio a conhecer a autora de obra já então consagrada.
"É uma verdade universalmente conhecida que um homem solteiro, possuidor de uma boa fortuna, deve estar necessitado de esposa", assim começa o mais genial dos livros de Jane Austen, "Orgulho e Preconceito" (a melhor tradução brasileira é de Lúcio Cardoso, em edição do Círculo do Livro).
Austen escrevia o que hoje se pode vulgarmente chamar de "novelões", no que se refere à fórmula do enredo: três ou quatro famílias de provincianos condados ingleses entrelaçam seus destinos numa trama cujo objetivo final é sempre arranjar um casamento para seus jovens membros, especialmente as mulheres, umas coitadas sem direito a herança e dependentes de um bom dote.
Vencidos os antagonistas (quase sempre o dinheiro ou intrigas de outra mulher), os finais são invariavelmente felizes, a despeito de soluções miraculosas para o desenlace da história, arranjos cuja verossimilhança soa hoje pouco consistente.
Mas a ação não é o forte da ficção de Austen. Aliás, justamente esse aspecto de sua técnica romanesca (o enredo simples e sempre igual) apareceria, em meados do século 19, popularizado, diluído e explorado até os estertores nas longas narrativas sentimentalóides da novela de folhetim. E é, de resto, o mesmo artifício que sustenta até hoje as novelas de televisão, com seus cacoetes de finais felizes repletos de casamentos. Estaria nesse traço secundário da literatura de Austen a identificação contemporânea com sua obra? Pouco provável, e nada merecedor para um trabalho de dimensões muito mais interessantes e profundas.
A paixão subtraída
Jane Austen foi um gênio da estruturação moral de temas, da criação de personagens e da técnica de revelá-los, e à trama, por meio dos diálogos, processo de composição narrativa emprestado do drama, e que teria levado um dos mais respeitados críticos ingleses da época, Alfred Tennyson, a comparar Austen a Shakespeare, como observa Otto Maria Carpeaux.
Ao contrário dos folhetins e das novelas de televisão, seus romances são marcados pela economia, pela concentração fiel aos temas abordados e aos preceitos do classicismo: seriedade moral na crítica da vida, pouco lirismo, nenhuma análise psicológica, nenhum subjetivismo, nenhuma paixão.
Sétima de uma família de oito filhos, seis homens e duas mulheres, Austen tirou seus personagens do seio das movimentadas relações familiares e do círculo de amigos da sociedade provinciana em que viveu: quando a aristocracia de sangue ia perdendo privilégios para uma burguesia ascendente, baseada na ética do dinheiro.
O panorama de Austen, nas palavras de Carpeaux, era tradicionalista: o rei, a aristocracia aburguesada, a classe média alta inglesa e "as autoridades civis, militares e da Igreja anglicana em perfeita harmonia dos poderes, mesmo que fossem indignos ou ridículos os representantes dessa hierarquia".
O próprio pai da escritora, o reverendo George Austen, era um reitor, eclesiástico encarregado da administração de uma paróquia, profissão que ela daria a vários personagens de seus romances. Há também todo um mundo de soldados e oficiais arrebatando corações de moças em suas histórias.
Austen era muito ligada à sua única irmã, Cassandra, e levou os fortes laços dessa relação fraternal ao centro de seus romances "Razão e Sentimento" (nas irmãs Elinor e Marianne Dashwood) e "Orgulho e Preconceito" (nas também irmãs Jane e Elizabeth Bennet). O próprio desenvolvimento das teses morais de Austen dão-se na caracterização das irmãs em "Razão e Sentimento": Elinor é a "razão" e Marianne o "sentimento".
Nenhuma das irmãs Austen se casou, mas é óbvio, pelos livros e pelas poucas cartas deixadas por Jane -Cassandra queimou as mais íntimas, para que nunca fossem divulgadas- que ambas experimentaram com intensidade os tormentos da paixão e do amor, bem como as contradições e frustrações das propostas de casamentos arranjados por dinheiro. A vida delas foi a das heroínas dos romances de Jane, com exceção do final então considerado feliz, o casamento.
Ilusões privadas
Não se pode dizer, como é voz corrente, que Jane Austen foi uma solteirona sem vida própria. Era escritora ativa, que pôde ver sua obra publicada e reconhecida. Além disso, foi mãe por tabela, dividindo seu tempo entre escrever e cuidar de dezenas de sobrinhos, em visitas aos irmãos, especialmente Edward, que vivia em Kent, e Henry, em Londres.
Personagens tão inteiros como Elizabeth Bennet, Fitzwilliam Darcy ("Orgulho e Preconceito") e Elinor Dashwood não poderiam ter sido escritos senão a partir de experiência vivida. São gente intensa, cujo conflito central é o desenvolvimento do caráter "através de erros morais ocasionados pela formação de ilusões privadas, em que falha a auto-realização".
Jane Austen era uma mulher incomum, assim descrita pela escritora Virginia Woolf, a partir de informações da família Austen: "Encantadora mas aprumada, adorada em casa mas temida por estranhos, de língua ferina mas de coração terno -contrastes que não são absolutamente incompatíveis; e quando nos voltamos para os romances, esbarramos ali também com as mesmas complexidades na escritora".
As observações de Virginia Woolf sobre a independência de espírito e a amplitude da ficção de Austen, apesar de todas as restrições de época e estilo também lhe fazem justiça. Ao resenhar "Love and Friendship", que Austen escreveu aos 15 anos, Virginia Woolf diz, em artigo de 1923 ("Jane Austen", in "Women and Writing", A Harvest/HBJ Books, 1980): "Nada é mais óbvio do que o fato de que essa garota de 15 anos, sentada em seu cantinho particular da sala de visitas, estava escrevendo não para arrancar uma gargalhada de seus irmãos, nem para consumo familiar. Ela estava escrevendo para todos e para ninguém, para nossa época e para a sua própria; em outras palavras, já naquela tenra idade, Jane Austen estava escrevendo".
Ironia e tolerância
A obra de Austen é também um protesto, ainda que moderado, como ressaltou um crítico, contra preconceitos e orgulhos aristocráticos. Protesto apresentado, em última instância, pela ironia. Seu espírito cômico, segundo observa outro crítico, se exercitou sobre paixões intelectualizadas, menos imediatas: orgulho, ambição, contradições pessoais, preconceitos.
O grande mérito da adaptação que a atriz Emma Thompson fez de "Razão e Sentimento" foi manter vivo o humor de Austen e sua apurada caracterização de personagens. Pode-se esquecer tudo sobre o filme, mas não se pode sair do cinema sem a marca impressionante da personalidade de Elinor Dahswood. Mesmo o pouco presente Edward Ferrars (interpretado por Hugh Grant), mocinho da história, causa impressão -e serve mesmo, cá entre nós na vida real, para tirar um pouco da lama a reputação desse também inglês ator hollywoodiano, envolvido recentemente em escândalo de atentado ao pudor.
A escolha de Thompson pela criadora de "Emmma" -e sua crítica implícita à vaidade decadente da nobreza- certamente não foi opção consciente de contraponto à atual situação da família real inglesa. Mas a Jane Austen não escapariam todos os elementos da sátira: o príncipe que desejou ser o Tampax da amante (Charles); a princesa adúltera, anoréxica e infeliz (Lady Diana); a segunda princesa, endividada em milhões de dólares por conta de festas e jóias espalhafatosas (Sarah Ferguson); a rainha mãe (Elizabeth) envolvida em especulações de um antigo caso de amor com o pai de Diana.
Material não faltaria para a afinada pena da ironia -a maneira que Jane Austen encontrou (como alguém sugeriu), senão para transformar a sociedade em que vivia, ao menos para adquirir forças que a tolerassem.

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