São Paulo, domingo, 4 de fevereiro de 1996
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Os amantes platônicos de Jane

A romancista ameaça o reinado efêmero de Quentin Tarantino

MARTIN AMIS
ESPECIAL PARA "THE NEW YORKER"

Parece que atualmente Jane Austen é mais quente do que Quentin Tarantino. "Persuasão" foi filmado recentemente, assim como "Razão e Sentimento"; há três versões em preparação de "Emma" e alguém certamente assassinará o adorável livro à moda-gótica "A Abadia de Northanger" ou terá a ousadia de lidar com a complexa austeridade de "Mansfield Park", e assim será.
Para "Orgulho e Preconceito", a BBC tomou compreensivelmente muito mais cuidado ao fazer o seriado de seis capítulos com custo de US$ 9,5 milhões, esvaziando as ruas da Inglaterra nas noites de domingo. A febre de Austen ou, para ser mais exato, a Darcy-mania (protagonista masculino de "Orgulho e Preconceito"), abateu-se sobre nós. Editores têm-se limitado a solicitar entrevistas com caminhoneiros e engenheiros aos quais aconteceu chamarem-se Darcy; peregrinações turísticas à casa de Jane Austen (em Chawton, Hants) cresceram em torno de 150% em outubro e as vendas de sacolas Austen, cerâmicas Austen, agasalhos Austen, toalhas de chá Austen e aventais Austen mantiveram-se igualmente altas.
Uns podem ser mais ou menos engraçados que os outros, mas todos os romances de Austen são comédias clássicas: tratam de jovens casais procurando um caminho rumo ao final feliz, chamado casamento. Além disso, todas as comédias de Austen são estruturalmente a mesma comédia. Há a Heroína, há o Herói e há um Obstáculo. O Obstáculo é sempre o dinheiro (não a classe -as origens de Mrs. Bennet estão no "comércio", mas as de Mr. Bingley também).
Com exceção de Emma Woodhouse, as Heroínas não têm um tostão, nem perspectiva segura além de uma confortável "solteirice". Quando o Herói se apresenta, ele parecerá obcecado por uma Rival -calculista, herdeira ou sedutora. A Heroína, por sua vez, será tentada, seduzida ou simplesmente importunada por uma contrafação de herói, um Canastrão -sedutor, oportunista ou almofadinha. O Canastrão pode ser mais rico que o Herói ("Persuasão", "Mansfield Park") e, apesar disso, muito mais divertido ("Mansfield Park").
O Herói também pode ser mais feio que o Canastrão. Em sua adaptação de "Razão e Sentimento" (que tem duas Heroínas), Emma Thompson faz o que pode para deixar o coronel Brandon elegante, mas o romance deixa claro que ele é um lastimável e arruinado velho de 35 anos. Brandon representa a punição da paixão desenfreada de Marianne por seu Canastrão, John Willoughby. Os defeitos do Canastrão destacarão os méritos muito sólidos do Herói. Enquanto as Heroínas têm fraquezas, os Heróis são modelos de perfeição. Dois deles -Henry Tilney e Edmund Bertram- são vigários.
Em "Orgulho e Preconceito", Austen aumenta a temperatura da comédia, dando um pouco de febre para o que podemos chamar de romance. Tanto a Rival quanto o Canastrão são figuras melodramaticamente espalhafatosas: a felina e sofredora Caroline Bingley, o debochado e autopiedoso George Wickham. Eles criam dificuldades estratégicas, mas não há quem consiga ameaçar, nem de leve, a atração principal. Pois Elizabeth é a Heroína mais irresistível e adorável de toda a obra -a certa distância.
Quanto ao Herói, esta é a única vez em sua breve existência que Miss Austen não suprime nada: alto, moreno, bonito, ponderado, inteligente, nobre e desinibidamente rico. Ele tem uma vasta fazenda, uma casa na cidade, 10 mil por ano "limpos", sua irmã Georgiana, 30 mil por ano -ao passo que o dote de Elizabeth equivale a uma libra esterlina por semana.
Nenhum leitor consegue resistir à ambição descarada de "Orgulho e Preconceito", embora fique claro, por uma evidência inerente ao romance, que Austen nunca se perdoou inteiramente por isso. "Mansfield Park" foi a sua -e a nossa- penitência. Com suas próprias expectativas frustradas, os sonhos românticos se desfizeram numa modesta esperança de respeitabilidade. "Persuasão" foi sua segunda chance. E então ela morreu.
Andrews Davies, que adaptou "Orgulho e Preconceito" para a televisão, foi bastante sagaz ao encarar sua função como a de uma parteira artista -para retirar a idéia da página e levá-la à tela com o menor dano possível. Afinal, ele já tinha o exemplo da versão com Laurence Olivier e Greer Garson, de 1940 (baseada num roteiro de Aldous Huxley, entre outros), e pôde verificar que qualquer adulteração reduziria o original a um emoliente sem maiores consequências. A leitura de Huxley é desastradamente agradável; até mesmo Lady Catherine de Bourgh vira uma boa criatura. A questão é que o adaptador tem de fazer o que é preciso ser feito. A piedosa e vigilante Janeite olha tudo sempre pronta a escandalizar-se com a mais ínfima quebra do decoro.
Logo depois, vemos Elizabeth no quarto que divide com Jane, dizendo: "Se eu puder amar um homem que me ame o bastante para me aceitar por apenas 50 libras por ano, ficaria muito feliz". Isso nos situa numa cena financeira (logo em seguida, veremos Mr. Bennet suspirando sobre seu livro de contabilidade); mas submete Elizabeth a uma tendência ao devaneio completamente estranha a seu estoicismo rebelde.
Mais tarde, quando vem à tona o escândalo da fuga de Lydia com o namorado, e Darcy se despede friamente de Elizabeth na hospedaria próxima a Pemberley, Austen escreve: "Elizabeth sabia o quanto era improvável que se encontrassem novamente com a mesma cordialidade que tinha marcado os vários encontros em Derbyshire". Isso é traduzido num solilóquio de uma única linha: "Nunca mais o verei". O texto de Austen mostra uma corajosa dignidade na adversidade, e o de Davies, a confissão de um amor que Elizabeth ainda não sente. Cada mudança ameaça uma parede do edifício.
No romance "Changing Places", de David Lodges, um franzino acadêmico inglês vestido de tweed vai dar aula na Universidade da Nação Eufórica, na costa Oeste, enquanto um robusto e impetuoso acadêmico americano vai dar aula numa universidade de província encharcada de chuva, chamada Rummidge. O americano, Morris Zapp, começa seu curso:
" 'O que vocês querem discutir esta manhã?'
'Jane Austen', resmungou o garoto de barba.
'Ah, hã. Que tema?'
'Pensei na consciência moral de Jane Austen.'
'Isso não faz meu tipo.'
'Eu não consegui entender o título que o sr. propôs, professor.'
'Eros e o Banquete nos últimos romances, não foi? Qual é o problema?'
O estudante baixou a cabeça."
Esta anedota opõe dois estilos críticos: o inglês ainda preso nos campos de batalha da ética patrulhados por F.R. Leavis, os americanos pairando sobre as construções do mito e da estrutura. Mas a questão mais importante de Lodge é a de que Jane Austen dificilmente consegue manter todos entretidos. Os moralistas, as pessoas do tipo Eros-e-Banquete, os marxistas, os freudianos, os junguianos, os semióticos, os desconstrutivistas -todos acham uma aventura de parque de diversão os seis romances sobre a classe média de província. Na verdade, a cada geração de críticos e de leitores, sua ficção se renova.
Cada época apresentará uma ênfase peculiar e, neste festival Austen, nossas próprias ansiedades estão inteiramente à mostra. Queremos nos perder nas entonações e nos meandros do universo de Jane, mas nossa reação é predominantemente sombria. Percebemos a constrição da oportunidade feminina: como era sumária sua nubilidade e como era demorado e esmorecido o tempo que se gastava nisso. Percebemos como eram numerosas as ocasiões sociais que causavam dor e como os poderosos estavam interessados nessa imposição. Vemos como os impotentes dispunham de poucos recursos contra quem pudesse odiá-los. Perguntamo-nos quem nesta terra se casará com as pobres garotas. Homens pobres não podem. Homens ricos não podem. Quem pode então?
Ficamos aflitos e nos corroemos com seu confinamento físico (como esses cineastas ficam desesperados para tirar esses personagens para fora das casas). Dentre todas as virtudes, Jane Austen estima a "franqueza", mas a franqueza, como nós a entendemos, não tinha um palco para ser exercida. Basta uma única troca franca entre Anne Elliot e Frederick Wentworth para "Persuasão" desaparecer. Queremos que eles tenham seus prazeres. Ficamos espantados com sua auto-repressão. E horrorizados com seu ambiente de enfado.
A nova série da BBC tem sido vendida na imprensa como a revelação da talentosa "sensualidade" da obra de Jane Austen; naturalmente, isso revela muito mais a nossa ruidosa sensualidade.
Austen é notoriamente cerebral -uma resoluta avarenta nas descrições de refeições, roupas, animais, crianças, tempo e paisagens. Nos anos 90 também não temos isso. Dessa forma, em nossas televisões, Darcy e Bingley cavalgam rumo a Netherfield Park em seus resfolegantes cavalos, enquanto Elizabeth aprecia uma boa caminhada numa ladeira das redondezas. Mais tarde, saindo do banho, Darcy olha através da janela e vê Elizabeth brincando com um cachorro. Lydia é surpreendida meio despida por Mr. Collins e, sorrindo desconcertada, confronta-o com seu próprio constrangimento. Lutando contra sua paixão imprudente por Elizabeth, Darcy se põe a esgrimir. "Eu vou conseguir isso", murmura. "Eu vou". Voltando de Pemberley, com a barba por fazer, com um cavalo fogoso entre as coxas, desmonta e mergulha impetuosamente no lago.
É óbvio que aqui estamos deixando Jane Austen para entrar em D.H. Lawrence -e Ken Russell. "Há muita sensualidade reprimida na obra de Austen", Davies disse, "e eu a trouxe à tona". Mas por que parar aí? Por que não dar a ela um pouco de vitamina C e uma camisinha? Os personagens de Austen recusam o auxílio da era da terapia. Como criação literária, eles prosperam em sua inibição. É a fonte dessa energia frustrada.
O sensualismo introduzido por Davies e Langton traz um ganho incontestável: todas essas cenas melosas e sonhadoras no quarto que Elizabeth divide com Jane, com velas acesas e cabelos soltos, nos faz sentir o peso crucial desse amor entre irmãs. Elas lembram que o argumento emocional do livro está intimamente ligado a esse relacionamento; e sentimos esse peso sem nos dar conta de que na verdade ele pesa demais.
Assistindo à cena de Marianne à beira da morte (sofrimento de amor e febre), em "Razão e Sensibilidade", pergunto-me por que ficava tão tocado e desolado quando Elinor se dirigia à irmã com um simples "minha querida". Ficamos tocados porque o afeto é literariamente verdadeiro -e pode muito bem permanecê-lo, na vida. Para a solteira, nenhuma mudança virá ao encontro do seu ideal de amor; as pessoas mais próximas são as mais queridas e isso é o fim de tudo. Em "Persuasão", sentimos a última privação de Anne Elliot quando procura calor no solipsismo sem humor de sua irmã Mary. E nos consolamos ingenuamente com o fato de que Jane Austen, por mais que sentisse falta de tanta coisa, pelo menos tinha Cassandra.
"Quatro Casamentos e um Funeral" tem alguma coisa a ver com isso; como efeito de uma cena tipicamente embaraçosa, uma oportunista edição de dez poemas de Auden escalou as listas de best sellers. Era um livro chamado "Conte-me o Que Você Sabe Sobre o Amor", com uma foto de Hugh Grant na capa (por acaso, Grant faz um louvável Edward Ferrars em "Razão e Sensibilidade").
Sobre Jane Austen, Auden foi grande, mas injusto: "Você não pode chocá-la mais do que ela me choca;/ Comparada a ela, Joyce parece inocente como a relva./ Isso torna mais desagradável assistir a/ Uma solteirona inglesa de classe média/ Descrevendo os efeitos amorosos do 'metal'/ Revelar francamente e com muita sobriedade/ A base econômica da sociedade".
Nós, dos anos 90, certamente chocaríamos Jane Austen com nossa coleção de liberdades irrefletidas e desleixadas. Entretanto há nos versos de Auden uma suspeita de que talvez sejamos capazes. O "metal" faz com que Charlotte Lucas aceite Mr. Collins ("desgraçando-se" num casamento prudente), mas não faz com que ela o ame. Elizabeth rejeita Mr. Collins; e, com tão pouco zelo em mostrar-se polida, também rejeita Mr. Darcy, com seus 10 mil por ano.
Escrevendo sobre "Ellegy", de Gray, William Empson diz que os poemas apresentam um patético esquecimento provinciano, ao deixá-lo num estado de espírito que o faz querer mudá-lo. Mas "mudar" é tarefa da sátira. A sátira é ironia militante. A ironia é um sofrimento mais moroso. Ele não o incita a transformar a sociedade, ele o fortalece para suportá-la. Jane Austen era de fato uma solteira inglesa de classe média. Ela morreu num sofrimento desamparado aos 41 anos. Mas sobreviverá por mais uns 200 anos. Seus amantes são platônicos, mas formam uma multidão.

O QUE LER
Os livros de Jane Austen disponíveis em tradução no Brasil são: "Razão e Sentimento" (Nova Fronteira), "A Abadia de Northanger" (Francisco Alves), "Mansfield Park" (Global), "Orgulho e Preconceito" (Ediouro). Fonte: CBP (Catálogo Brasileiro de Publicações) e Livraria Nobel

Tradução de LUCIANA ARTACHO PENNA

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