São Paulo, domingo, 4 de fevereiro de 1996
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A rainha da ironia na teia do computador

MARIA ERCILIA
DA FOLHA ONLINE

Jane Austen, quem diria, foi parar na Internet. Milhares de páginas de informação sobre a escritora inglesa fazem uma verdadeira colcha de retalhos de informações preciosas, trívia, livros inteiros...
Ao pesquisar na Internet o que há sobre Austen, encontramos dois tipos de material: aquele gerado recentemente pelo modismo, feito de comentários de ocasião, e trabalhos mais sérios de aficionados, ligados ao ambiente acadêmico.
Separando o joio do trigo: o endereço mais fantástico para o fã de Jane Austen é o http://curly.cc.utexas.edu/~churchh/, que abriga o projeto "Jane Austen em hipertexto". É neste endereço que se descobre que a bobagem adolescente em cartaz no cinema, "As Patricinhas de Beverly Hills", é baseada em "Emma", romance de Austen.
Mas este endereço na Universidade do Texas vai muito além da diluição pop de uma das mais sensacionais escritoras inglesas.
Verdadeiro monumento digital de dedicação e carinho a Austen, este endereço inclui genealogias dos personagens de seus livros, um mapa da Inglaterra indicando os lugares por onde a escritora passou, bibliografia, artigos, biografia, retratos, ilustrações dos livros e por aí vai.
Mas o maior presente ao leitor são os seis romances da escritora, mais obras inacabadas, textos de juventude e cartas. Tudo! Quem tiver paciência para ler no computador ou imprimir, não precisa se preocupar em comprar os livros.
Até obras mais difíceis de encontrar, como "Love and Freindship" (é assim mesmo que se escreve) e "Plan of a Novel" (texto satírico sobre as manias literárias da época), estão lá. Uma curiosidade é o fato de que se pode encontrar também uma gravação de leitura em voz alta de "Orgulho e Preconceito" (http://town.hall.org/Archives/radio/IMS/HarperAudio/).
Um artigo sobre a edição eletrônica da Oxford das obras completas de Austen faz o levantamento do número de personagens que se engajam em diálogos em sua obra: 141. Outros levantamentos incluem o número de palavras pronunciadas por cada personagem, o número de cores mencionadas pela autora e levantamentos gramaticais (quantas vezes a palavra "eu" aparece e coisas assim).
Existe também uma lista de discussão sobre Jane Austen. É a Austen-L, que se originou no Canadá (o endereço é listserv@vm1.mcgill.ca) e tem 545 assinantes. O nome de Austen tem aparecido também ultimamente em grupos de discussão como rec.arts.books e rec.arts.movies.current-films.
É preciso distinguir entre listas, com um número pequeno de participantes que acabam se conhecendo ao longos dos anos, e grupos da Usenet, que ficaram muito banalizados com o crescimento da Internet, e são hoje, na maioria, um equivalente eletrônico de um bar cheio de pessoas rudes que não se interessam umas pelas outras.
E o que será que Jane Austen diria, ao se encontrar refletida em milhões de computadores? À primeira vista, não dá para imaginar casamento mais exótico. A Internet é apenas uma das mídias de um mundo cada vez mais incapaz de literatura, talvez por falta de capacidade de concentrar, de se recolher, de olhar para dentro. E Austen levou uma vida fisicamente limitada, recolhida, não casou, morreu cedo. Foi pura introspecção. Como Emily Dickinson, apresentou seu talento como única resposta à repressão e à hipocrisia sufocante de seu mundo -e foi suficiente. A resistência passiva e paciente que ofereceu às barreiras que uma escritora encontrava na Inglaterra de sua época carregou sua obra através dos séculos.
Quem sabe? Rainha da ironia, talvez apreciasse o contraste entre seu mundo de rituais sociais precisos, filho de uma cultura definida e cheia de fronteiras, e a teia doida de computadores, onde admiradores anônimos depositaram suas palavras, um século e meio depois.

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