São Paulo, segunda-feira, 12 de fevereiro de 1996
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Pellegrino e Bispo se encontram em asilo

FERNANDO GABEIRA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Hélio: Nesta semana me lembrei de você. Não tenho idéia de onde esteja, mas os poetas, de certa maneira, estão sempre por perto. Um vizinho nosso, o Abel, escreve poemas. Ele põe o feijão no fogo e mergulha nas palavras de forma que o cheiro de queimado invade a casa, sobe a escada e nós dizemos: hoje tem poema.
A verdadeira razão da lembrança foi uma visita à Colônia Juliano Moreira. Estivemos lá em 1985 e você escreveu um artigo sobre as condições dantescas do lugar.
Pois é. Nada mudou. Vi mulheres amarradas no catre, vi loucos vestidos com farrapos sangrentos, deitados no chão, sujos de restos de comida. Um horror.
Nada mudou é apenas maneira de dizer. Muitos morreram. Bispo morreu. Artur Bispo do Rosário morreu. E nós só voltamos agora porque houve 27 mortes em janeiro, alguns de septicemia.
Vi uma mulher negra dando comida à sua vizinha de catre. A outra estava sentada na cama, amarrada à cabeceira com uns trapos brancos. Todos os dias aquela mulher vinha dar a refeição, mesmo que a outra gritasse, cuspisse e, na sua cegueira, não conseguisse divisar os traços de sua benfeitora.
Isso não mudou. Essa força que os mantém vivos, essa solidariedade na mais extrema miséria me lembrou de você, dos nossos melhores sonhos, da certeza que há um núcleo indestrutível no ser humano.
Bispo não aprovaria tanta emoção. Ele não acreditava em mudanças no mundo. Por isso se fechou sete anos num cubículo e reconstruiu tudo, tecendo tapetes com fios de uniforme, reencantando cada objeto com seu olhar de artista.
A bem da verdade, Bispo não reconstruía um mundo perdido (lembra-se das bandeiras de cada país por onde passou como marujo?) apenas pela arte em si. Isso era apenas um instrumento de sua passagem, um ensaio para o encontro com Deus. O manto que ele teceu para entrar no reino dos Céus é a prova de que acreditava nessa transição: "Você já preparou seu semblante para Deus?", perguntava sempre.
Há um enfermeiro para 200 pacientes. E todos os ventiladores quebraram. Forçados pelo calor, têm de dormir no chão e com isso contraem doenças pulmonares, morrem mais cedo.
Perguntamos ao diretor por que não funcionam os ventiladores. Problemas de eletricidade, respondeu. Aí perguntamos: mas e esse magnífico ar condicionado no seu gabinete?
Aí ele explicou que, não havendo corrente normal, ele fez um gato porque um dia um funcionário do ministério quase morreu de calor na sua sala. Ele se comoveu com o sufoco de um burocrata mas foi incapaz de fazer um gato para salvar a vida dos loucos.
Quem eram os loucos, o que é ser louco, Hélio? Lembra-se de um médico meio loiro que nos acompanhou na visita de 85? Parecia ser um dos que poderíamos contar para virar o jogo. Pois é: hoje, ele é o diretor.
Não se trata mesmo de trocar pessoas. É uma tentacular e monstruosa máquina que engole a todos.
Bispo pode achar ingênua essa crença na força que une as mulheres e os homens nos pavilhões fétidos, sem água. Mas o próprio mundo de 1.400 obras que ele criou está em perigo, pois todo o acervo está dentro da Colônia.
Não terei coragem de escrever outra carta invocando seu nome se isso não mudar nos próximos meses. Esqueci de dizer que agora sou deputado, o Paulo Sérgio influi na política de direitos humanos do governo e o Gregori está no coração do poder.
Vou apelar para eles, ministros, e até Fernando Henrique (é o presidente). Se não conseguir nada, resta o mundo, a humanidade, pois esses limites nacionais são tão ridículos quanto o escrúpulo do diretor em puxar eletricidade para mover os ventiladores.
Por acaso são brasileiras aquelas mulheres de cócoras no meio do mato, uivando de dor e mágoa de uma família que as abandonou aqui há mais de 20 anos?
Não, dentro desses limites do hospício, ninguém é brasileiro. Talvez haja uma bandeira rasgada, associações de funcionários discutindo a eleição municipal, um retrato do presidente na sala do diretor. Mas o que é isso diante da força que une as duas mulheres num pacto de sobrevivência solidária?
Está na hora de fazer um gato e buscar essa eletricidade humana que está em toda parte, canalizá-la para o Brasil. E resolver a parada.
Impossível percorrer esse espaço verde sem me lembrar de você e do Bispo. Ambos têm razão: a compaixão é o único dínamo de uma existência sem nenhum sentido especial; mas nas horas de calma é preciso se recolher e sonhar com um mundo que não existe, um país que jamais nasceu, e deixar que eles se cristalizem em palavras, formas e cores.
São noites maldormidas, essas de espera, ansiedade com burocratas que não se movem. É duro continuar visitando a colônia sem a sua presença, sem ter o Bispo para jogar uma daquelas incríveis partidas de xadrez, com regras absolutamente cambiantes.
É o mesmo cheiro, os mesmos urubus, os mesmos clamores de braços esquálidos, com a diferença de que vocês não estão mais aqui, exceto no gesto de amor de uma louca que dá banho na outra e no pequeno museu das obras completas do Bispo.
Talvez tenham conseguido com a morte um saber que relativize e atenue essas dores. Nesse caso, queiram desculpar o tom, diria até a gravidade que me mantém aprisionado ao drama da colônia. Mas isso é já um diálogo entre vivos e mortos e agora não cabem digressões.
Sobraram 1.165 pessoas, se alguma não morreu neste momento em que escrevo. Com a inspiração e vocês, será possível, talvez, prepará-las para a passagem, contribuir para que melhorem o semblante que vão mostrar a Deus.

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