São Paulo, segunda-feira, 12 de fevereiro de 1996
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O laboratório de Deus

JOSIAS DE SOUZA

SÃO PAULO - Eis o que descobri em meus primeiros dias de paulicéia: São Paulo não é propriamente uma cidade. É um laboratório em que se realizam experiências com vistas ao Juízo Final. É um projeto-piloto de Apocalipse.
As Escrituras registram que o mundo foi feito em seis escassos dias. Assim mesmo, vapt-vupt. Já no sétimo dia, o Criador relaxou. Tomado pela falsa sensação de dever cumprido, descansou.
Deu no que deu. Agora, para dar cabo de sua obra, como previsto no livro de São João, o Todo-Poderoso previne-se. Cuida primeiro de São Paulo. Sem correria, sem novos equívocos.
A coisa caminha bem. A julgar pela deterioração da qualidade de vida na capital paulista, o fim dos tempos é um projeto mais viável do que o da criação do universo.
O paulistano ainda não se deu conta de seu papel. É uma cobaia cega. Alheio aos desígnios do Senhor, apenas molda seu cotidiano à tragédia. Há uma única e barulhenta exceção: o motorista de táxi.
Rosto colado no pára-brisa do automóvel, o taxista tem diante de si, dia e noite, uma exposição móvel de decadência, uma vitrine do caos. E faz da cabine do carro uma tribuna da desgraça. "Essa cidade não dá mais", vociferou um. "Se fosse o senhor, voltaria para Brasília", recomendou outro. "Vou lhe dar uns conselhos", pontificou um terceiro. "No centro da cidade, tire jóias e relógios, segure bolsas e carteiras. Evite a rua tal em hora de chuva. Não deixe carro dando sopa fora da garagem. Se puder, more perto do emprego..."
Minha primeira impressão foi a de ter chegado à sucursal do inferno na Terra. Hoje, passada o impacto inicial, vejo o quanto pode enganar-se um ser humano.
O horror paulista é perfeito demais para ser obra do diabo. Por trás de cada megacongestionamento, de cada enchente, de cada monturo de lixo, de cada nuvem de poluição (...) há o dedo de Deus.
Até bem pouco, lamentava o fato de ter sido reconduzido pelo destino à São Paulo de meu nascimento. Hoje agradeço aos céus. O prejuízo pessoal é compensado por um privilégio jornalístico. Posso agora acompanhar o fim do mundo de dentro do laboratório de Deus.

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