São Paulo, quarta-feira, 21 de fevereiro de 1996
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Filme vai recriar os bastidores de 'Limite'

JOSÉ GERALDO COUTO
DA REPORTAGEM LOCAL

Os bastidores do filme mais cultuado do cinema nacional, o mítico "Limite" (1930), serão o tema do primeiro longa-metragem de ficção do cineasta Joel Pizzini, 35.
O projeto coincide com um momento de revalorização do filme de Mário Peixoto. Eleito pelos críticos, em enquete realizada pela Folha em 1995, o maior filme brasileiro de todos os tempos, "Limite" terá seu roteiro original publicado em maio, quando será inaugurado o Arquivo Mário Peixoto.
Previsto para ser rodado em preto-e-branco, "A Invenção de Limite" será, segundo Pizzini, "um 'making of' de ficção que buscará reconstituir o processo de realização do filme de Mário Peixoto, o cotidiano das filmagens, as soluções técnicas criadas pelo fotógrafo Edgar Brazil, além da intrigante personalidade do diretor".
Este último aspecto -a figura de Mário Peixoto (1908-92)- é o mais delicado. Autor de uma obra-prima solitária aos 22 anos, Peixoto passou o resto da vida fazendo tentativas frustradas de realizar outra grande obra (no cinema ou na literatura) e alimentando a mitologia que se criou em torno de "Limite" e dele próprio.
Um dos mitos espalhados por Peixoto era o do gênio adolescente: ele dizia ter feito "Limite" aos 16 anos (teria nascido em 1914). O pesquisador Saulo Pereira de Mello, 63, restaurador de "Limite" e maior conhecedor da obra do cineasta, desfaz o equívoco sumariamente: "Em seu diário na escola inglesa, Mário escreve, em 25 de março de 27: 'Hoje faço 19 anos'. Ele nasceu, portanto, em 1908".
Mas o lance mais espetacular de Peixoto foi escrever um texto sobre "Limite" e atribuir o artigo ao cineasta russo Serguei Eisenstein, que o teria publicado numa revista inglesa. Hoje sabe-se que Eisenstein provavelmente nem viu "Limite", mas isso, segundo Saulo Pereira, importa pouco: "Se não viu, azar dele. O artigo, de todo modo, é a melhor coisa que já se escreveu sobre o filme".
O pesquisador, que organiza um livro com a fortuna crítica de "Limite", pretende incluir o célebre artigo entre as críticas e ensaios dedicados ao filme.
O filme de Joel Pizzini deverá começar justamente com a leitura, em "off", de um fragmento do artigo de Eisenstein/Peixoto.
"Nossa idéia é incorporar ao filme também o imaginário, a mitologia em torno de 'Limite', ao menos como possibilidade", diz Pizzini, que escreveu o argumento de "A Invenção de Limite" em parceria com a psicanalista Jane de Almeida, 31.
Um exemplo curioso: Mário Peixoto dizia ter filmado cenas que depois se perderam e não fazem parte da versão conhecida de "Limite". Pizzini vai recriar em seu longa a filmagem dessas cenas, cuja descrição detalhada o próprio Peixoto lhe entregou, por escrito, em 1990, quando escreveu uma carta autorizando-o a fazer um filme sobre "Limite".
Saulo Pereira de Mello, a quem Pizzini tem consultado regularmente para a elaboração de seu roteiro, acredita que tais cenas perdidas sejam mais uma invenção de Mário Peixoto, que desejaria aperfeiçoar ainda mais sua obra-prima.
Pereira de Mello não quer participar do roteiro de Pizzini, mas faz uma sugestão: "Que as coisas controversas fiquem em aberto, como em 'Cidadão Kane': fulano diz isso, sicrano diz aquilo, mas a verdade ninguém sabe".
Outra ajuda valiosa com que Pizzini pretende contar é a do cineasta e diretor de fotografia Mário Carneiro, 65, que foi amigo e colaborador de Mario Peixoto. Este chegou a convidá-lo a filmar cenas pretensamente perdidas de "Limite", para "completar" o filme. Dizia que só Carneiro seria capaz de recriar a fotografia poética e deslumbrante de Edgar Brazil.
Livro e conversas
Joel Pizzini colheu muitas informações (e invenções) sobre as filmagens de "Limite" diretamente da fonte, ou seja, do diretor Mário Peixoto.
"Em 1990, fui procurá-lo em sua casa, em Angra dos Reis, inicialmente com a intenção de fazer um documentário sobre ele", diz.
Os dois se tornaram amigos, e Pizzini acabou ajudando Peixoto a compilar e organizar os textos do segundo volume (ainda inédito) de seu romance "O Inútil de Cada Um". Durante quase um ano, Pizzini visitou o velho cineasta todos os fins-de-semana.
"Fiquei fascinado com a aventura que ele e Edgar Brazil empreenderam, no Brasil de 1930, para fazer um filme tão ousado, radical, poético e inventivo como 'Limite' ", diz o cineasta, que concluiu recentemente o curta de ficção "O Enigma de um Dia" e o média documental "O Pintor" (sobre Iberê Camargo).
"A Invenção de Limite", que ainda não tem orçamento definido, deve cobrir o período entre a concepção de "Limite" por Mário Peixoto (abril de 1929) e sua estréia, no cine Capitólio, no Rio (17 de maio de 1931). Mário Carneiro, naturalmente, será o diretor de fotografia.
Pizzini pensa em introduzir alguns "flashes" com Mário Peixoto já velho, mas quer evitar o tom de lamento e decadência.
Também não se tentará dar explicação ao fato de Peixoto não ter feito mais nenhum filme (chegou a iniciar dois). Para Saulo Pereira, vários podem ser os motivos: "Ele fez sua obra-prima no final do cinema mudo, e era difícil adaptar-se ao sonoro; ele pode também ter-se entediado com as dificuldades e picuinhas de fazer cinema num país como o Brasil".

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