São Paulo, sábado, 24 de fevereiro de 1996
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Niemeyer tem um sósia que lhe tira o sono

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

Os jornais cariocas do dia 19 de janeiro passado estavam ocupados demais com a então iminente visita do presidente Fernando Henrique a Petrópolis para dar o merecido espaço à visita que na véspera o vice-presidente Marco Maciel fez à casa das Canoas, de Oscar Niemeyer, dentro da floresta da Tijuca. Construída em 1952 e residência do arquiteto durante anos, a casa se tornou sede da Fundação Oscar Niemeyer, presidida pelo embaixador José Aparecido de Oliveira. Em perfeito estado de conservação mas sem moradores, ela tem agora a pureza de um desenho. É cercada de jaqueiras, mangueiras, imbaúbas, e conta com orquestra permanente de sabiás, rolinhas e sanhaços. Como casa, porém, só vive em sua forma, refletida na piscina que tem diante de si e na qual, por sua vez, se refletem estátuas de Ceschiatti.
A fila de carros na estrada, no dia da festa, era enorme, e a massa de convidados, antes mesmo de cumprimentar o vice-presidente ou o dono da casa, cercava a árvore mais antiga ali presente: Barbosa Lima Sobrinho, o presidente da ABI. Dentro de mais quatro dias Barbosa Lima estaria completando 99 anos, isto é, entrava na reta do centenário. Vai fazer 100 anos com a Academia Brasileira de Letras, como se também tivesse sido fundado por Machado de Assis. Lá estava ele, forte e ereto como uma sumaúma, diria Tom Jobim, que adorava rolar na boca as sílabas do nome dessa rainha das árvores amazônicas.
Não vou nem tentar, como um cronista social, fazer a lista dos que em seguida rodearam o cordial obelisco que é o vice Marco Maciel. Só direi que, no dia tórrido, predominavam os homens que estavam como eu, sem gravata mas de paletó. Entre os engravatados, para espanto geral, Jaguar. No bando indômito dos sem gravata nem paletó alguns bravos tamoios como Ferreira Gullar, Chico Caruso, Scliar, Gilberto Chateaubriand.
Dei uma volta pelo jardim e ao redor da piscina com Oscar, que em geral se afasta de grupos muito densos. Perguntei a ele -que há anos mora no seu apartamento-escritório da avenida Atlântica- se não sentia saudade dos tempos em que morava ali, naquele horto florestal. Oscar respondeu que o que de fato tinha importância para ele era saber que continuava vivo o que tinha imaginado, desenhado, e que tantos continuavam morando nos prédios que fizeram ou rezando na mesquita de Argel, na catedral de Brasília.
Aliás, quando terminávamos a volta pelo jardim e um grupo já envolvia Oscar, fiquei pensando que talvez a maior emoção dele seja o momento em que faz o desenho inicial. Ano passado, um escritor francês, Jean Petit, publicou um livro sobre ele intitulado "Niemeyer, poète d'Architecture". Ao estudar em sua totalidade a obra vasta que tinha diante de si, Petit se deteve, com espanto parecido com o meu, diante dos desenhos, do risco inicial que vai levar ao futuro prédio, à casa. Petit dedica boa parte do livro a uma seção que intitulou "Dessins et Desseins", desenhos e planos, e onde mergulha no desenho. Petit apertou tanto Oscar sobre os desenhos que faz quando a idéia de uma obra lhe vem, que Oscar acabou por lhe contar, como exemplo, o minucioso, quase insuportável pesadelo em que imaginou, de alto a baixo, um hospital que parecia seu dever construir. Ele estava lendo, na ocasião, "O Pavilhão dos Cancerosos", de Soljenitzin. Não vou transcrever o sonho completo, o pesadelo de Oscar a compor, adormecido, aquele hospital fantasmagórico. O trecho obsessivo acaba assim: "Optei, afinal, por uma solução inteiramente nova, mas que podia muito bem servir na realidade. Tratava-se de 24 salas de operação superpostas em grupos de três e dotadas de elevadores hidráulicos. Se oito dessas salas estivessem sendo utilizadas, as outras estariam em fase de esterilização. O problema da contaminação ficaria então minimizado, os médicos, as enfermeiras, os pacientes tendo a oportunidade de sair da operação para uma zona de desinfecção adequada. (...) Acordei às 4 da manhã para desenhar o estranho sonho que tinha tido".
Isto nos dá uma idéia da fortíssima presença do desenho na obra desse arquiteto e escultor. A facilidade que a gente julga sentir nas lindas figurinhas de mulher que Oscar desenha é na realidade fruto do estudo, do sonho, ou, como vimos, do pesadelo tirânico. Aliás, em relação especialmente a essas figuras de mulher, devemos muito ao pavor que Oscar tem de andar de avião. Quando construía Brasília, ele ia e voltava de automóvel, contemplando durante horas a fio as nuvens que o acompanhavam lá de cima. No seu relato autobiográfico "Meu Sósia e Eu" (Editora Revan) ele conta: "Sempre que viajava de carro para Brasília, minha distração era olhar as nuvens do céu. Quantas coisas inesperadas elas sugerem. Às vezes são catedrais enormes e misteriosas (...) outras vezes guerreiros terríveis, carros romanos, monstros desconhecidos (...) e, mais frequentemente, porque sempre as procurava, lindas e vaporosas mulheres recortadas nas nuvens, a sorrirem para mim dos espaços infinitos. (...) Naquele dia, porém, a visão foi mais surpreendente. Era uma bela mulher, rosada como uma figura de Renoir. O rosto oval, o seio farto e as pernas longas. E fiquei a olhá-la embevecido, com medo de que se diluísse de repente. Mas os ventos daquela tarde de verão me deviam estar ouvindo e durante muito tempo ela ali ficou a me olhar de longe."
E por aí vai o relato de "Meu Sósia e Eu", livro que me convence de que o sósia meio enigmático a que se refere Oscar é esse desenhista que ficou em segundo plano mas que é forte bastante para o despertar no meio da noite e forçá-lo a fixar uma nuvem ou procurar minorar a dor dos que jazem em leitos de hospital.
Folheio, depois de "Meu Sósia e Eu", a "Encyclopaedia of Modern Architecture", da Thames & Hudson, a mais conhecida das editoras inglesas de temas artísticos. A capa é uma vista do Palácio da Alvorada. O verbete sobre Oscar Niemeyer é assinado por Henrique Mindlin, que era ele próprio arquiteto e historiador de arte. O artigo dele sobre Oscar é dos mais longos e completos. Leio, ou releio, o perfil ali traçado de outros arquitetos e confirmo a impressão de que o único de nossos tempos que eu colocaria no nível de Niemeyer é mesmo Le Corbusier. Os demais "grandes" como Gropius, Mies van der Rohe ou Frank Lloyd Wright não me parecem tão originais e criadores. Eu diria que Lloyd Wright construiu a casa mais linda do século, Kaufmann House, de 1936, na Pensilvânia. Desta residência, chamada "Falling Water", jorra, simplesmente, uma cachoeira.
Mas ninguém mais, além de Le Corbusier, fez tanta coisa nova e irretocável quanto Niemeyer. E não sei de desenhos de "Le Corbu" tão eloquentes quanto os do nosso arquiteto, ou do sósia dele. Bendito pavor de avião. Benditas nuvens do Planalto Central.

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