São Paulo, segunda-feira, 26 de fevereiro de 1996
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Dez anos de cruzado

JOÃO SAYAD

O Cruzado foi lançado no dia 1º de março de 1986. Dez anos depois, frustrações superadas e o sucesso do Real talvez permitam refletir com liberdade sobre o Plano. É uma análise misturada com depoimentos.
1) Desde 1986, os planos de estabilização no Brasil tiveram sempre duas partes: um processo de desindexação da economia e a fixação de algum preço nominal importante - salários ou câmbio.
2) Os críticos mais severos do Cruzado, como o ministro Antonio Delfim Netto, congelaram ou fixaram preços nominais, sem desindexar a economia antes.
Em 1980, o governo prefixou a variação do câmbio em 50% embora a inflação observada fosse de 10% ao ano. Não funcionou.
3) O Plano Cruzado assim como o Plano Real parte das idéias brilhantes de Pérsio Arida, André Lara Rezende e Francisco Lopes.
Lara Rezende e Arida propuseram que a melhor forma de desindexar a economia brasileira seria indexá-la totalmente, como foi feito no período da URV.
Lopes propunha a desindexação instantânea, um choque, como o que foi feito no Cruzado.
Os professores de Campinas que tomavam parte no governo não acreditavam que a inflação pudesse ser resolvida naquela conjuntura e daquela forma.
Mas abraçaram o Plano com lealdade como a professora Maria da Conceição Tavares.
4) A idéia da URV foi apresentada por Arida em 1986, já na forma de decreto, mas o ministro Almir Pazzianoto argumentou corretamente que não seria entendida pela população e pelos trabalhadores. Decidiu-se então pela idéia de choque.
A indexação total é feita espontaneamente sendo as tablitas e descontos fixados voluntariamente entre as partes utilizados na a maior parte dos contratos.
A desindexação por choque, como foi o Cruzado, é fácil de ser entendida, mas esbarra nos problemas da fixação de tablitas, que é determinada pelo governo a partir do que seria a inflação esperada na data do plano.
5) Em 1996, podemos afirmar que o Cruzado nunca poderia ter dado certo.
Não havia preço nominal que pudesse ser fixado. Os trabalhadores pleiteavam correção trimestral de salário, resultado natural de anos de leis salariais de arrocho seguido de abertura democrática.
Nas vésperas da reabertura do Congresso diziam que o líder do governo iria pleitear correção mensal, ultrapassando a demanda dos trabalhadores!
O câmbio estava constantemente ameaçado pela crise da dívida externa.
Com crise da dívida externa e trabalhadores demandando correções mais frequentes de salários, o governo só podia contar com a emoção do público o que foi obtido pelo congelamento geral.
O congelamento foi ao mesmo tempo a razão do sucesso do plano e a mais forte razão do fracasso.
6) Muitos argumentaram que o Plano Cruzado não deu certo porque o governo não cortou o déficit.
Na reunião de Carajás, o presidente Sarney afirmou enfaticamente que quem tinha tido a coragem de fazer o Cruzado, faria qualquer corte de gastos.
O problema, entretanto, não era o déficit, mas controlar a demanda agregada.
Os salários cresceram 30% e, se representam 50% do PIB, precisava-se cortar a demanda em 15%. O déficit público não representava um número tão grande.
7) A partir da reunião de Carajás, decidiu-se controlar a demanda por meio de impostos sobre cerveja, automóvel e cigarro, que não seriam repassados aos índices de preços e portanto diminuiriam a demanda sem aumentar a inflação.
Não funcionou. Lula argumentou corretamente que trabalhadores tomavam cerveja, tinham carro e fumavam e que o aumento desses preços deveria ser computado na correção dos salários.
O aumento planejado desses preços pela equipe econômica era três vezes maior que o aumento efetivamente aprovado pelo presidente Sarney.
A prudência do presidente ajudou o Cruzado pois a reação da população foi péssima e os aumentos de preços do que chamamos de "produtos de luxo" pressionaram a inflação.
8) Em novembro de 1986, foram aumentados novamente os preços do cigarro, da gasolina, da cerveja e do automóvel, que não deveriam ser computados nos índices de preços já que eram empréstimos compulsórios.
O Ministério do Planejamento argumentou contra, dada a experiência de julho. Em vão -o aumento foi realizado e a taxa de inflação dos meses seguintes passou de 3% ao mês, para 7% e para 14%. O plano tinha fracassado.
9) A forma alternativa de controlar a demanda seria por meio de aumento do Imposto de Renda na fonte, o que era possível em 1986.
Aumentar os preços de produtos considerados de "luxo" estouraria o plano, conforme estourou.
Se o controle da demanda tivesse sido bem sucedido, o Cruzado teria durado mais tempo, mas ainda assim não teria dado certo, pela impossibilidade de se fixar um preço nominal importante -câmbio ou salário.
10) Depois do Real aprendemos que a melhor forma de controlar a demanda é por meio de aumento das reservas compulsórias no sistema bancário.
11) O Cruzado praticou taxas de juros muito baixas o que foi muito criticado.
Mas os juros baixos diminuíram sensivelmente a dívida e o déficit públicos. Algo que o Real poderia ter feito. E o controle da demanda ficaria a cargo das reservas compulsórias sobre o sistema bancário e não sobre os juros.
12) A experiência foi positiva -o Cruzado é o início do fim da inflação.
Com o Cruzado foi abandonada a idéia de gradualismo e de recessão para combater a inflação. Demonstrou-se também que a melhor estratégia é combater a inflação antes e o déficit público depois.
O Real adotou estratégia inversa, mas os dados do déficit de 1994 demonstram que o Cruzado estava certo.
A frustração do fracasso e a natureza humana sempre encontram culpados para os sonhos não realizados.
O fracasso do Cruzado não pode ser debitado a nenhum grande erro de política econômica, ainda que tenham havido erros em julho e novembro de 1986. Quem sabe em 1996, possamos dizer que o Cruzado deu certo no Real?

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