São Paulo, segunda-feira, 26 de fevereiro de 1996
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O direito de ter direitos

MARCIO SOTELO FELIPPE

Inaugurada a temporada de caça aos direitos. Há pouco um governador tentou o despautério de bloquear os salários dos servidores sempre que a folha de pagamentos superasse determinado limite.
Agora, acordo entre o Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo e oito sindicatos da Fiesp pretende que empresários possam contratar de 20% a 25% da mão-de-obra sem contrato escrito, sem recolhimento de FGTS e consequentemente sem a multa de 40%, e sem recolhimento integral das contribuições previdenciárias.
Os sociólogos e economistas podem estudar, a partir daí, este "modo de produção brasileiro", derivação do capitalismo para alguma forma de regime escravo.
À parte o manifesto desprezo pelo ordenamento positivo, recentes pesquisas demonstram que o nosso custo da mão-de-obra e encargos é dos mais baixos do mundo. A cantilena do "custo Brasil" apóia-se em uma falácia, mas não é este o ponto que quero fixar aqui.
O de que se trata é saber se queremos uma sociedade que tenha o mínimo respeito pelo conceito de ter um direito, ou se vamos entender que se pode, às vezes, abrir mão disso em nome de algum suposto benefício geral.
Uma advertência para quem se inclinar pela segunda alternativa: apoiado no, por assim dizer, bem comum, conceito tão fluido, tão sujeito a influências ideológicas e a diferentes concepções do mundo, uma maioria de ocasião pode aniquilar o direito do governador de Santa Catarina e do presidente da República a mais três anos de mandato.
Ou o direito de editar um jornal, ou qualquer outro que se resolver deva ser aniquilado em nome de um hipotético benefício para a sociedade. Aliás, a maioria pode tudo e a história está repleta de exemplos. Uma lição que já deveria ter sido aprendida é a de que, contra argumentos ideológicos e contra maiorias irracionais, o melhor antídoto é fixar definitivamente na sociedade o sentido do conceito de ter um direito. Assim ficamos mais seguros.
O conceito de ter um direito somente pode significar a possibilidade de exercer uma prerrogativa ou auferir algo exatamente quando as circunstâncias são adversas. Quando são favoráveis, muito obrigado, a lógica me dispensa o conceito. Trata-se de uma dialética de complementaridade -quando digo "devedor", tem que estar pressuposto "credor". Invocar a liberdade de expressão, por exemplo, apenas cabe se a liberdade de expressão está ameaçada.
O presidente do STF, ministro Sepúlveda Pertence, veio a público outro dia dizer algo que deveria ser óbvio: os servidores têm direitos. Podemos acrescentar: os brasileiros têm direitos. Não há uma categoria especial de brasileiros -os que agora estão desempregados- à qual se nega o direito de ter direitos. Esta tem que ser uma sociedade em que se pode resolver problemas sociais sem aniquilar a idéia de ter direitos.
Ronald Dworkin, catedrático da Universidade de Oxford, publicou há tempos um importante volume de ensaios, com grande repercussão nos meios jurídicos. Tem o sugestivo título de "Taking Rights Seriously" ("Levando os Direitos a Sério") e suas lições mostram-se extremamente pertinentes neste momento.
Afirma que um direito não pode ser cerceado segundo o juízo utilitarista de que é provável, em termos gerais, que haja um benefício à comunidade. Se se pretende, continua o professor, respeitar os direitos individuais, devemos renunciar a quaisquer benefícios marginais que se possa obter ao pôr de lado esses direitos.
E, ainda, ter um direito deve ser o direito de fazer algo mesmo quando a maioria pense que não se deve fazê-lo. O suposto benefício geral não é uma justificação para ignorar os direitos individuais. Caso contrário aniquilamos os direitos, afirma Dworkin, concluindo: quem diz levar a sério os direitos deve aceitar antes de mais nada a idéia, costumeiramente associada a Kant, de dignidade humana: tratar cada homem como membro da comunidade humana.
Não é difícil concluir, entre outras coisas, que isso leva necessariamente à idéia de igualdade.
Tanto o falecido decreto do governador de Santa Catarina como este esdrúxulo acordo são atos de barbárie social. Em uma interpretação mais benevolente para os personagens, pode-se supor que visaram mais o resultado político do que o resultado declarado.
Ainda assim é grave. Não é muito sadio jogar com a idéia de direitos e, além disso, podem nos deixar a desagradável suspeita de que ignoram tudo o que aconteceu no mundo após o Iluminismo e a Revolução Francesa.

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