São Paulo, quarta-feira, 28 de fevereiro de 1996
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'O fato de nós termos essa diversidade é positivo'

Leia a seguir a íntegra do discurso do presidente Fernando Henrique Cardoso no Palácio do Planalto:

Senhor ministro da Justiça, dr. Nelson Jobim; senhores ministros de Estado; senhores parlamentares, senadores, deputados; senhor coordenador-geral do Grupo de Trabalho, professor Hélio Santos; senhor presidente da CUT; senhor reitor da Universidade de São Paulo; senhores membros do grupo; senhoras e senhores.
Nós estamos, hoje, dando um passo adiante num propósito que é antigo, de muita gente e do governo também. Creio que o professor Hélio Santos colocou a questão na perspectiva correta. Trata-se de um movimento que precisa ter, não diria o apoio, mas uma presença no Estado, mas que vai muito além disso, porque é um movimento que diz respeito à cidadania e à cultura.
O problema da valorização da população negra não é um problema burocrático e nem é um problema meramente legal, embora haja aspectos legais na questão. É muito mais do que isso. É um problema cultural, é um problema de participação, é um problema de cidadania, é um problema social.
No caso brasileiro, nós temos de valorizar o fato de nós constituirmos uma sociedade multirracial. Tenho dito isso, seguidamente, nos meus pronunciamentos como presidente da República, porque não se trata de valorizar por valorizar. É porque isso é parte constitutiva da nação. A nação brasileira se compõe dessa multiplicidade.
Então, quando falo do negro, estou falando do brasileiro, do cidadão, da cidadã brasileira. Como presidente da República, tenho a obrigação de ressaltar esse aspecto. Aqui, não se trata de um movimento, de uma parcialidade. É uma parcialidade que forma um todo. E esse todo é, precisamente, hoje, expressivo, porque é múltiplo, porque tem uma enorme variedade de participações raciais e culturais. E nós temos que desenvolver formas civilizadas de convivência, que reconheçam o diverso e entendam que, realmente, o Brasil se distingue porque foi ou virá a ser capaz de fazer com que essa diversidade produza um resultado positivo para o conjunto do país, para o conjunto da nação.
Há um aspecto que eu creio que nós devemos insistir sempre, que faz falta no mundo de hoje, que é o aspecto da tolerância, do respeito à diversidade. Se o mundo de hoje é um mundo que tem um lado preocupante, é o da intolerância. E essa intolerância, geralmente, se apresenta sob uma forma de racismo.
Vê-se, hoje, em países de grande desenvolvimento econômico, que também são injustos. Não têm, talvez, o lado da injustiça social nossa, mais gritante, que é essa desigualdade baseada na distribuição de renda e da propriedade. Alguns países, aos quais me refiro de forma genérica por razões óbvias, não apresentam o mesmo panorama, tão desagradável, no que diz respeito à questão da distribuição de renda, mas não por isso deixam de ser injustos, porque estão voltando a ser racistas, a valorizar a exclusividade de um grupo racial.
Eis aí, realmente, uma ameaça para a civilização contemporânea. E a volta a esse tipo de apelo, que é irracional, que nós aqui fazemos questão, no Brasil, de dizer que nós somos o oposto disso. Nós valorizamos a existência de muitas raças entre nós, cada uma com suas características, mas todas com a capacidade de desenvolver uma vida em comum e de não fazer das suas diferenças motivo para privilégio. E isso é muito importante.
E, é claro também que, embora nós tenhamos no Brasil essa característica, em comparação com outros países, de valorizarmos a tolerância, nós, durante muitos anos, negamos a existência de diferenças e de racismo e de discriminação.
Muitos, aqui, sabem que eu escrevi trabalhos sobre essa questão. E, ainda agora, recentemente, fui ao Rio Grande. E sobre o negro no Rio Grande, eu escrevi alguns trabalhos. Sobre Santa Catarina, também. Mas, agora, no Rio Grande, estava recordando, me fizeram, lá, um folheto recordando as pesquisas que nós fizemos. E, naquela ocasião, era comum dizer que falar na existência de preconceito -não digo nem de discriminação- era contra o Brasil.
Nunca me esqueço que, uma vez, no Itamaraty, do qual, depois, fui chefe, quando ainda era no Rio de Janeiro, um embaixador quase me tirou da sala.
Ele me disse depois, que esteve a ponto de me tirar da sala -eu era bastante jovem, então, e claramente mais impetuoso- e que eu dizia coisas que digo sempre e continuo dizendo, e costume dizer de forma educada, como fiz lá também. Mas disse que havia preconceito no Brasil. Ele considerava que isso era uma coisa contra o Brasil, contra a nossa imagem no exterior.
Isso mudou muito, de lá para cá. Hoje, nós sabemos que a nossa imagem no exterior não depende dessas coisas. Pelo contrário, depende de nós termos a coragem de reconhecer o que está errado e trabalharmos para modificar o que está errado.
Existe, sim, preconceito no Brasil. A valorização do negro implica também na luta contra o preconceito, porque ele existe. Ele aparece muito objetivamente, em termos de discriminação de salário, de não utilização de pessoas, não só de negros, de certos grupos raciais, não é o único grupo discriminado, há outros grupos. E a formação de uma sociedade democrática implica que o governo atue muito claramente nessa direção, também, porque se não houve essa convergência de esforços da sociedade civil e do aparelho de Estado, nós não vamos conseguir, realmente, transformar numa realidade cotidiana aquilo que nós gostamos de dizer como valor, ou seja, a tolerância, o lado de que nós somos capazes de conviver na multiplicidade de raças e de culturas.
E acho que nós devemos dizer isso orgulhosamente. O fato de nós termos essa diversidade é, como a biodiversidade, positivo. É positivo, aumenta a nossa capacidade criativa, aumenta a nossa capacidade pelas próprias diferenças, de produzirmos alguma coisa mais criativa, em todos os terrenos. Isso deve ser valorizado e, certamente, nós devemos também desdobrar, esse grupo há de desdobrar com o apoio do ministro da Justiça, com o apoio dos demais ministros que estão aqui, que fazem parte deste mesmo movimento, há de desdobrar os seus trabalhos em aspectos que são institucionais, que são legais, que são combates efetivos, que dizem respeito ao âmbito do direito e das leis e do controle, da fiscalização, portanto, do aparelho burocrático para coibir formas de discriminação e formas de preconceito.
Mas esse, não creio que seja nem o lado mais importante, o lado mais importante seria valorizar efetivamente o que há de positivo e de fazer ressaltar o que há de positivo.
Todos sabem também que eu fiz questão de ir a Palmares, porque achei que era importante que o presidente da República mostrasse ao país que havia, aí, um herói nacional, que era um negro, escravo que lutou pela liberdade, portanto lutou pela democracia. Aqui, é preciso incorporar esse tipo de luta, esse tipo de exemplo, esse tipo de gesto àquilo que faz de nós todos um povo que tem referências. É uma referência positiva não só para os negros, para o Brasil. Há sempre que encarar essa questão com essa perspectiva. Não se trata de um herói dos negros, é um herói negro dos brasileiros. O presidente da República foi lá para dizer claramente que assim era.
Acredito que nós, hoje, temos condições de ampliar as instâncias nas quais esses temas serão debatidos, sempre dentro da perspectiva democrática, sempre dentro da perspectiva da tolerância, não aceitando nenhuma forma de racismo, nem mesmo o racismo para valorizar a raça que está sendo discriminada, porque isso resulta também numa coisa negativa, tem de ser uma posição afirmativa, não de negação da existência de diferenças de discriminações e de combate (...) tudo isso, mas dentro de uma perspectiva, como disse o professor Hélio Santos, da cidadania e da democracia.
Quero felicitá-los. Tenho certeza de que o Ministério da Justiça é o Ministério da Cidadania mesmo -e deve ser o Ministério da Cidadania- e que os outros aspectos do governo, as outras instituições governamentais serão sensíveis àquilo que for proposto e elaborado neste grupo de trabalho.
Felicito a todos e desejo que tenham êxito nos trabalho. Muito obrigado.

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