São Paulo, quarta-feira, 28 de fevereiro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O crack em evidência

SERGIO DARIO SEIBEL

A imprensa vem dando grande destaque a um fenômeno considerado como uma "epidemia": o uso de crack nas classes médias das grandes cidades brasileiras.
Na verdade, tal produto, resultante da preparação ou transformação da própria cocaína, vem tendo seu custo barateado, e, consequentemente, seu uso intensificado, não apenas nas classes sociais de maior poder aquisitivo, mas também nas longínquas periferias, onde dados de estruturas de saúde nos mostram a realidade alarmante das consequências, não apenas criminais, mas principalmente clínicas de tal utilização.
A cocaína, seja inalada, injetada por via endovenosa ou fumada sob a forma de crack, está tornando público um assunto que vem sendo colocado sob a forma de um falso dilema, tanto pela mídia quanto pelas autoridades responsáveis pelas questões de saúde pública, já que apenas fortalece modismos, em nome de um moralismo inconsequente, que é, sem dúvida, o representado pela conservadorismo da sociedade brasileira.
O que vem fazendo o Confen no sentido de abrir-se seriamente o debate sobre as drogas em nosso país? Não podemos esquecer que a legislação sobre a qual se trabalha é de 1976. Não se tem levado em conta que os principais problemas de drogas no Brasil são decorrentes das doenças causadas por algumas drogas ditas legais, vendidas em bares e quase livremente em farmácias, como, por exemplo, pelo álcool, pelos tranquilizantes e pelos "moderadores de apetite" anfetamínicos.
Não nos referimos apenas às doenças psiquiátricas, mas em especial à altíssima prevalência de internações em leitos de clínica médica, como gastroenterologia, unidades de fígado e cardiologia, com doenças graves como úlceras perfuradas, cirroses hepáticas, bem como infartos agudos do miocárdio e acidentes vasculares cerebrais, para ficarmos apenas em algumas.
É preciso que fique claro que não se trata de proibir ou liberar uma substância, mas que se formule uma política onde os preconceitos possam e devam ser levantados e amplamente discutidos, em que a população, até agora privada de seus direitos mínimos de cidadania e influenciada pela massificação de uma propaganda enganosa, que glamouriza o uso de certas substâncias, venha a pensar com clareza sobre as consequências dos produtos que utiliza. Que essa população seja também diretamente responsável não apenas pelas doenças provocadas por todas essas substâncias, mas também pelos acidentes de trânsito nas ruas e estradas, por causa do alto consumo de todas essas drogas, principalmente álcool e anfetamínicos. Que se parta para uma política integrada de conscientização, com ênfase em uma educação preventiva, onde se priorize todos os aspectos referentes às questões relevantes que digam respeito ao uso, ao abuso, a dependência e ao tráfico ilegal de drogas.

Sérgio Dario Seibel, 51, é psiquiatra do Hospital das Clínicas da USP e membro dos Conselho Estadual de Entorpecentes de São Paulo.

Texto Anterior: Grupo homossexual lança cartilha no PR
Próximo Texto: Protesto faz Senado apressar votação de projeto sobre doação de órgãos
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.