São Paulo, quarta-feira, 28 de fevereiro de 1996
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Ataque ao Cade e retrocesso

JOSÉ DEL CHIARO

O atual contexto de ataques ao Cade -tanto ao órgão quanto a certas decisões que prolata-, em instante que antecede a nomeação, pelo presidente da República, de seus novos conselheiros, e em que, ademais, avalia-se a conveniência de alterar a lei que disciplina a repressão ao abuso do poder econômico e a livre concorrência, impõe que se reflita, com isenção e coragem, quanto às razões e reais motivações de tais ataques.
Abstração feita ao acerto ou não das decisões emanadas por aquele colegiado, é fato inconteste que o Cade despontou e vem se firmando como entidade merecedora de atenção por parte dos empresários, na condição de responsável pela aplicação de legislação que, em confronto com cultura assentada em distorções políticas, sociais, jurídicas e econômicas, demanda a mudança de velhas práticas e a adequação de posturas do dia-a-dia dos negócios à nova realidade.
Realidade esta ditada pela Constituição de 88 e disciplinada pela lei nº 8.884/94, bem como, no plano econômico, à abertura externa.
Com efeito, da proteção do mercado fechado à realidade da competição em mercados abertos, as empresas brasileiras, salvo honrosas exceções, "estagnadas" tanto pela ausência de investimentos tecnológicos como pelo "desinteresse" em arejar a forma de gestão, acabaram expostas, sem maiores preparos, ao atual cenário da economia global.
Assim, da lucratividade em substancial monta, decorrente dos ganhos inflacionários, bem como de margem "arbitrada" pelo extinto CIP, nossas empresas deparam com a realidade competitiva: o ganho deve ser imanente à sua atividade-fim e não decorrer de manobras financeiras ou de uma política de controle de preços.
Em decorrência afloram, dentre outros, os conceitos e idéias de reengenharia, padrões ISO e competitividade, se pressupondo nesse novo cenário de amadurecimento dos agentes econômicos o indispensável afastamento do Estado intervencionista, cedendo lugar às forças do mercado.
Desnecessário ponderar que as forças de mercado não bastam para o estabelecimento das condições de concorrência e afastamento de possíveis abusos do poder econômico. Faz-se indispensável, para isto, tanto a legislação antitruste, no Brasil conhecida como lei de defesa da concorrência, como a certeza da atuação de órgãos estruturados e capacitados para aplicar tecnicamente os dispositivos previstos nessa lei.
É evidente que a aplicação de tais dispositivos legais incomoda em especial àqueles que, em gabinete, mediante a obtenção de decisões ou privilégios arbitrários, pois emanados sem a observância de critérios balizados em dispositivo legal específico, viam suas ambições atendidas, fossem estas atinentes a um simples reajuste de preço ou referentes à expansão das atividades de sua empresa, mediante a aquisição de concorrentes, inclusive obtendo financiamentos com juros subsidiados.
Ademais, muitas de nossas autoridades e alguns burocratas, além de não conseguirem se desvincular dos conceitos que nortearam o período ditatorial findo com a abertura da economia, ainda não admitem, talvez até de modo inconsciente, sejam aquelas decisões agora examinadas tecnicamente pelo colegiado do Cade.
Para tanto este se baliza nos parâmetros da Lei nº 8.894/94 que, precisamente para lhe conferir maior autonomia política e independência técnica, o transformou em autarquia.
Órgãos semelhantes ao Cade existem, foram, são e continuarão sendo respeitados e prestigiados em todos os países democráticos. A Comunidade Européia, inclusive, nesta oportunidade, avalia a conveniência de tornar mais rigoroso o âmbito do exame dos atos de concentração de empresas.
Mas, precisamente pelo fato de o Cade estar cumprindo o seu papel institucional e, com isto, contrariando interesses, é que surgem os mais diversos ataques.
Dentre estes, é lamentável que algumas críticas sejam prolatadas sem o indispensável rigor técnico por personalidades formadoras de opinião que, para tanto, se apegam a aspectos ou decisões isoladas e, com isto, além de comprometerem a própria avaliação, acabam deturpando os fatos.
A culpa que pretendem atribuir ao Cade, a pretexto de ignorar o cenário global, em verdade decorre da inexistência de uma política industrial que, por evidente, balizaria com transparência os elementos a serem analisados pelo colegiado.
Neste contexto de transição para uma economia de mercado aberto e competitivo, e portanto de manifesto aprendizado, é mais do que justificável tanto a polêmica quanto a ocorrência de eventuais equívocos, inclusive nas decisões do Cade.
Porém, os ataques ao Cade e à lei de defesa da concorrência, ao contrário do que se afirma, sinalizam afastamento da modernidade e da democracia, além de implícito retrocesso ao arbítrio das decisões políticas.

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