São Paulo, quarta-feira, 28 de fevereiro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Loach retrata frieza totalitária do Estado

AUGUSTO MASSI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Ken Loach diz ser o último cineasta inglês ligado ao marxismo. Compreender "Ladybird" é vislumbrar a dimensão política do encontro entre Maggie (Crissy Rocky), uma inglesa de Liverpool, e Jorge (Vladimir Vega), um exilado político paraguaio.
Este inusitado par amoroso não deve ser confundido com uma defesa do multiculturalismo ou com discursos a favor das minorias.
No meio dessa babel migratória, Loach procura detectar movimentos sociais contraditórios, enquanto a revolta irracionalista de Maggie a coloca à margem de uma sociedade civil extremamente controlada, a experiência política terceiro-mundista de Jorge diz que é preciso encontrar uma forma de adaptar-se a essa nova ordem.
A primeira metade de "Ladybird" procede por flash-backs. Utilizando um distanciamento brechtiano, Loach reconstrói a vida de Maggie, pinçando os momentos de maior violência: briga conjugal dos pais, surras do marido e -após um de seus filhos se queimar gravemente-, a perda dos direitos sobre os quatro filhos, de pais diferentes, que passam a viver sob a tutela do Estado.
Ao contrário dos melodramas, onde o flash-back tem como finalidade conferir movimentos de flamboyant ao mundo dos afetos, o objetivo de Loach foi congelar a violência, transformando-a em documentos de barbárie.
Na outra metade, assistimos ao esforço de "naturalização" de Jorge. Pouco a pouco ele supera as adversidades imediatas: riscos de deportação, desemprego e os demais mecanismos de opressão que envolvem o imigrante até alçar à condição de cidadão britânico. Neste processo de "normalização", Maggie e Jorge fixam residência e têm um filho. No horizonte utópico do casal, havia a esperança de reaver os quatro filhos.
O serviço social não está totalmente convencido da reabilitação de Maggie e como se já não bastasse a decisão de mantê-la longe dos quatro, retira-lhe também a guarda do recém-nascido. A ótica trotskista de Loach não foca nenhum assistente social ressentido, não responsabiliza nenhum advogado maligno, perscruta apenas a verdadeira face do Estado e as aberrações de uma máquina burocrática.
Responsável pelo clássico "Vida em Família", baseado nas idéias do psiquiatra Ronald. D. Laing, no qual analisa uma adolescente enfrentando o "Estado Maior" da instituição familiar, agora, quase vinte anos depois, é como se Loach filmasse a vida adulta daquela adolescente. A resistência e a fertilidade de Maggie muitas vezes se confunde com uma força irracional, do mesmo modo com que a racionalidade dos assistentes sociais se confunde com a frieza totalitária do Estado.
Por vezes, o diretor força a mão e sentimos o peso do documentarista profissional da BBC. Apesar do final feliz anunciado nos letreiros, a história dessa Mãe-coragem se repete todos os dias, não como farsa, mas como tragédia. Dimensão trágica transmitida pela canção popular que dá título ao filme: "Ladybird, ladybird/ Fly away home/ Your house is on fire and your children are gone/ And that's little Ann/ And she has crept under the frying pan" (Joaninha, joaninha/ Voe de seu lar/ Sua casa está pegando fogo e suas crianças já foram/ E é isso pequena Ann/ Ela se arrastou para baixo da frigideira).

Vídeo: Ladybird, Ladybird - Sombras de um Passado
Direção: Ken Loach
Elenco: Crissy Rocky, Vladimir Vega
Distribuição: Mundial (tel. 011/536-0677)

Texto Anterior: Aos 96, Bardi é homenageado com livro
Próximo Texto: 'Somente Elas' tenta ser 'Thelma e Louise' mas se perde na estrada
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.