São Paulo, domingo, 3 de março de 1996
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Injusto e perverso

CELSO PINTO

O sistema social do Brasil não é apenas injusto. É deliberadamente perverso, como mostra um estudo feito pelo Banco Mundial no ano passado, "Brazil, a Poverty Assessment".
O estudo faz um esforço para identificar quem se beneficia com os gastos sociais no Brasil.
A conclusão é impressionante: quanto mais pobre, menos se recebe em gastos sociais federais, estaduais e municipais. Os 20% mais pobres ficam com 15%, enquanto os 20% mais ricos abocanham 21%.
Esse padrão cruel se repete em quase todas as áreas.
A educação, que é a arma mais poderosa para eliminar a pobreza e melhorar a distribuição de renda, segue o mesmo padrão absurdo. Os 20% mais pobres ficam com 16% dos gastos.
Quanto mais ricos, maiores os ganhos, até chegar aos 20% no topo, que absorvem 24% dos gastos.
Comparado com vários países em desenvolvimento, esse perfil é espantoso.
Gastos sociais devem ser progressivos, isto é, maiores para quem ganha menos. É o que acontece em países como Chile, Colômbia ou Malásia. No Brasil, ocorre o oposto.
A distribuição dos gastos não é nem sequer proporcional à população pobre. Os que ganhavam até meio salário mínimo somavam, em 1990, 28% da população, mas recebiam apenas 19% dos gastos sociais.
O próprio Banco Mundial, num estudo anterior, tinha mostrado o enorme desperdício na área social, onde o beneficiário último recebia, às vezes, a metade dos recursos -o resto ficava com os intermediários.
O novo estudo faz uma radiografia crua da má administração, má qualidade e desperdício de programas sociais.
Talvez o elemento novo mais instigante, contudo, seja a constatação do gigantesco desvio de alvo.
O trabalho sustenta que não adianta simplesmente jogar mais dinheiro na área social -é preciso melhorar a qualidade do gasto.
Corta o mito, também, de que não há nada a fazer pelos pobres enquanto a estabilização não estiver completa.
O estudo mostra como a baixa inflação e a retomada do crescimento são importantes para reduzir a pobreza.
Mas não endossa a recente ressurreição da velha teoria de que é preciso esperar o bolo crescer antes de dividi-lo.
Nas contas do estudo, havia 24 milhões de brasileiros abaixo da linha da pobreza em 90, ou 17,4% da população.
Se o governo conseguisse identificar cada um desses pobres, bastaria gastar 0,8% do PIB para tirá-los da miséria.
Obviamente, isso é muito difícil. Por melhor que um programa social seja desenhado, será quase impossível atingir toda a população miserável. Além disso, é quase certo que ele acabará beneficiando, junto, não-pobres.
De todo modo, acabar com a pobreza não é apenas uma questão de dinheiro.
O Brasil gastava, em 90, 19% do PIB em gastos sociais públicos (federais, estaduais e municipais) e outro tanto com gastos sociais privados (uma estimativa dos anos 80 é 7% do PIB).
É um número razoável, comparado a outros países em desenvolvimento.
O ataque à pobreza é, também, uma questão política delicada, algo que o estudo não chega a discutir.
Não basta apenas melhorar a eficiência e reduzir a corrupção na distribuição dos gastos sociais. É preciso mudar o público beneficiado.
Aí começam as dificuldades. É muito mais fácil para um governo, em qualquer esfera, criar vários novos programas na área social, fazer barulho e distribuir as novas benesses para quem quiser do que redistribuir o que já existe. Se não houver dinheiro adicional disponível, trata-se de redistribuir benefícios existentes e cortar privilégios.
Como mostra a discussão sobre a Previdência, é difícil encontrar no Congresso quem aceite mexer até mesmo nos mais absurdos privilégios de alguns grupos.
Criar novos programas, com bandas e fanfarras, dá votos. Melhorar a eficiência de velhos programas, e focalizá-los melhor no público que precisa, dá dor de cabeça e tira votos.
Quando o próprio sistema de gastos sociais tem um viés de perversidade, contudo, não há como evitar a questão da qualidade e da realocação de recursos.
Sem ela, por mais dinheiro que despeje na área social, o Brasil vai continuar colecionando o título de campeão mundial da má distribuição de renda, e o de um país com indicadores sociais só comparáveis aos mais pobres países da África.

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