São Paulo, domingo, 3 de março de 1996
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Déficit público: não há razão para pânico

RAUL VELLOSO

O resultado de caixa negativo do Tesouro Nacional, em janeiro último, reacendeu a fogueira das preocupações dos agentes econômicos com o aumento recente do déficit público.
Da mesma forma que os resultados desfavoráveis de 1995 eram previsíveis, não há porque esses não possam ser revertidos. Já em 1996 deverá ocorrer melhora significativa, simplesmente porque as taxas de juros estão caindo, e isso tem efeitos expressivos nas contas públicas. Basta que, na média do ano, as taxas caiam para 12% a 15% acima da inflação, conforme anunciado.
Confirmando-se o ingresso de maior parcela de recursos em espécie oriundos do programa de privatização e supondo a sua utilização prioritária na redução da dívida pública ter-se-á um novo e relevante fator de diminuição da despesa de juros do governo.
É nas contas não-financeiras que se situam as grandes dificuldades de ajuste, e essas só não têm sido maiores por causa da evolução satisfatória da arrecadação. O problema é antigo, complexo e de difícil solução, mas isso não significa que as despesas não possam parar de crescer nesse setor.
Escrita no calor da redemocratização do país, a Constituição de 1988 determinou, entre outros objetivos, o resgate rápido da "dívida social", o fortalecimento da federação (traduzido, principalmente, na redução da participação do governo central no bolo tributário) e a recuperação dos salários dos servidores públicos.
Embora isso seja obviamente meritório, o problema é como conciliar os expressivos aumentos de despesa na implementação dessa grande tarefa com a manutenção de contas ajustadas e flexíveis.
Mesmo com a aceleração da inflação, nos anos anteriores ao Plano Real, alguns itens da despesa não-financeira tiveram crescimento impressionante, em termos reais.
Os benefícios da Previdência (INSS) cresceram cerca de 104% entre 1988 e 1995. Os gastos com o seguro-desemprego passaram de valores irrisórios antes de 1988 para R$ 2,3 bilhões anuais em 1995. O programa de renda mínima para idosos e deficientes começa a ser implementado este ano, com o dispêndio anual previsto em cerca de R$ 400 milhões.
O Tesouro Nacional aumentou dramaticamente a destinação dos recursos arrecadados pela Receita Federal para o setor de saúde, passando da faixa de R$ 2,4 bilhões para algo ao redor de R$ 7,8 bilhões anuais, na margem. As liberações do Tesouro para pessoal cresceram 72% entre 1986 e 1995.
As transferências obrigatórias para Estados e municípios passaram de 33% do IPI e do Imposto de Renda, em 1987, para 54% do primeiro e 44% do segundo, a partir de 1993.
Dessa forma, depois de se deduzirem as transferências obrigatórias para Estados e municípios, quase tudo o que se arrecada hoje é gasto praticamente em salários e outros pagamentos da mesma natureza ou, então, na manutenção de hospitais, despesas essas de difícil compressão. Já os investimentos públicos se encontram provavelmente em seus níveis mais deprimidos da história recente.
Ao lado disso, começa a ficar difícil continuar esticando a arrecadação de tributos. Não é à toa que a reforma tributária, essencial por outros motivos, que não o do aumento de arrecadação, custa tanto a deslanchar.
Parece, assim, chegado o momento de estabelecer limites à expansão de certos gastos, tornando descendente a trajetória da despesa não-financeira, relativamente à da arrecadação.
Boa parte da solução depende da melhor gestão
É urgente, também, rever e flexibilizar a sua rígida composição atual, com vistas à retomada dos investimentos e à recuperação dos segmentos tradicionais do Orçamento, notadamente o setor de educação.
Não que os problemas estejam resolvidos. A despeito dos incríveis aumentos reais ocorridos, os resultados concretos, para a população, se situam abaixo das expectativas. O que significa que é preciso se fazer um esforço especial para aumentar a eficiência dos atuais níveis do gasto público.
Além disso, cabe não esquecer que, assegurado o sucesso do Plano Real, deixará de existir a corrosão espúria de certas despesas pela inflação galopante.
Ao suspender, neste ano, o reajuste geral de salários de início de exercício, o governo federal parece sinalizar uma mudança de postura nessa direção. O relatório que acaba de ser lido no plenário da Câmara sobre a reforma da Previdência prevê mudanças drásticas no regime especial dos funcionários públicos, para ter efeito imediato, e estabelece a desvinculação do reajuste dos benefícios do INSS ao do salário-mínimo, entre outras alterações.
A reforma administrativa deve entrar em discussão mais efetiva logo em seguida, introduzindo novos instrumentos de ajuste das despesas não-financeiras. Mas há muito ainda o que fazer nesses trabalhos de reforma, inclusive a redução do elevadíssimo grau de vinculação de receitas a determinadas despesas.
Como no caso federal, o déficit dos Estados e municípios tenderá a reduzir-se em 1996, pela programada queda nas taxas de juros.
O ajuste das contas não-financeiras talvez ocorra até de forma mais rápida, simplesmente porque haverá reduzidas possibilidades de financiar novos déficits "primários" por meio de operações regulares de crédito, nestas incluídas as operações bancárias de antecipação de receita (ARO), que costumam ser utilizadas intensamente em anos de início de mandato.
O Banco Central determinou o congelamento dos saldos devedores dessas operações no sistema bancário, a partir do final de novembro de 1995, fechando, assim, essa válvula. A mais nova modalidade de financiamento, as operações de antecipação de receita de privatização, está, como as demais, sob estrito controle das autoridades monetárias.
Isso tudo leva à conclusão de que tenderá a aumentar a incidência de atrasos de pagamentos e a busca por soluções, às vezes pouco ortodoxas, que produzam rápido alívio de caixa.
De qualquer forma, mesmo a contragosto, os governos estaduais e municipais serão levados a ajustar-se rapidamente, seja na direção de zerar o déficit "primário", seja na de voltar a gerar superávits, mesmo que moderados.
Resumindo: O fato concreto é que não caberia ter comemorado tanto o superávit do ano do lançamento do Real, com o qual se costuma confrontar o resultado desfavorável de 1995, nem tampouco entrar em pânico, agora, pelo temor de que algo novo tenha surgido, na área fiscal, capaz, por si só, de inviabilizar o plano de estabilização.
É preciso colocar o problema do déficit, que é antigo, nos seus devidos termos, para não ter ilusões quanto às dificuldades envolvidas e para criar a disposição necessária à realização dos duros ajustes que se impõem, de forma consistente e continuada.
Boa parte da solução depende mesmo é da melhor gestão possível, dentro das regras do jogo democrático. O resto dependerá do curso da revisão da Constituição de 1988, cuja conclusão, pelas naturais resistências, dificilmente ocorrerá dentro de um único ciclo eleitoral.

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