São Paulo, domingo, 3 de março de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O espião que saiu da Guerra Fria

HAROLD BLOOM
ESPECIAL PARA A FOLHA

O colapso da União Soviética e o fim da Guerra Fria, uma calamidade para alguns escritores de "thrillers" internacionais, não parece ter afetado John le Carré. Imagino que isto se deva ao fato de que o verdadeiro combate de Le Carré sempre foi com seu pai na literatura, Graham Greene, e com o pai de seu pai, Joseph Conrad. Esplêndido como ele é, no seu gênero, Le Carré tem tido o cuidado de permanecer dentro de seus limites, evitando seja o que há de melhor, seja de pior em Graham Greene.
Le Carré nunca escreveu um romance como "Brighton Rock", e manteve a distância, também, de comparações injuriosas com "Sob os Olhos do Ocidente" e "O Agente Secreto", de Conrad. Seu livro mais ambicioso até hoje, a meu ver, é "A Garota do Tambor" (1983), uma narrativa de espionagem em meio ao conflito árabe-israelense. Le Carré invoca, aqui, obliquamente "No Coração das Trevas", de Conrad, ao dar o nome Kurtz para o principal agente antiterrorista de Israel. O nome é uma ironia: Kurtz é um profissional impecável, mas também um homem do mais rigoroso autocontrole, e jamais sucumbirá ao "horror" conradiano, tanto daquilo contra o qual está lutando, quanto da maneira como deve lutar.
É possível sentir a distância que Le Carré guarda de seu personagem, uma versão israelense de seu outro grande agente, Smiley. Ele demonstra boa dose de ambivalência com respeito a Kurtz, um protagonista mais enigmático do que o muito britânico Smiley. E afinal há muito pouco, também, de Conrad em Kurtz, que não é nem um poeta romântico, nem um vértice potencial de niilismo.
Graham Greene, em seus "entretenimentos", está para Conrad como John Webster para Shakespeare: assim como o dramaturgo jacobino, Greene segue os passos do mestre, mas simplifica tudo pela intensidade, de tal maneira que a tragédia moral se transforma em melodrama -excelente melodrama, muitas vezes. Já Le Carré sacrifica a intensidade de Greene para representar a embaraçosa complexidade moral do agente Smiley. O resultado provoca uma grave perda de qualidade dramática nos romances de Smiley. Mesmo assim, ele continua sendo o mais adequado anti-herói de Le Carré, acima de Kurtz, ou do suicida Magnus Pyn, em "A Perfect Spy".
A compaixão, especialmente pelo renegado, é a grande virtude de Smiley e faz dele um representante do autor. Graham Greene, nos seus melhores momentos, em "Brighton Rock" e "This Gun for Hire", não tem, pragmaticamente, muito mais compaixão do que Webster, no "Demônio Branco" e na "Duquesa de Malfi". Conrad, em "Sob os Olhos do Ocidente" e "O Agente Secreto", aproxima-se de alguma coisa como o "desinteresse" shakespeareano, que o maior crítico inglês de todos os tempos, Samuel Johnson, temia estar no limite do niilismo espiritual. Nós, como leitores, só podemos admirar Le Carré por sua compaixão, mas um personagem como Pym permanece menos marcante do que Pinkie e Raven em "Greene", para não falar no niilista Decoud de Conrad, em "Nostromo".
Le Carré, no seu gênero, certamente não tem rival vivo; mas um chamado aos mortos faz ressaltar até que ponto ele fica aquém (por enquanto) dos seus precursores.

Tradução de Arthur Nestrovski.
O último livro de John le Carré, "Nosso Jogo", está sendo lançado neste mês pela Record.

Texto Anterior: Contra a lógica da produção destrutiva
Próximo Texto: Dieta era mais saudável
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.