São Paulo, domingo, 3 de março de 1996 |
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Noites brancas do universo hostil
JOHN UPDIKE
O frio é uma ausência, uma ausência de calor, e entretanto faz-se sentir como uma presença -uma presença hostil e vigorosamente ativa sobre seu rosto exposto, suas mãos e pés (a despeito de luvas e botas). O frio parece estar sempre em ação, ocupado em congelar a água em lagos e rios, moldando flocos de neve hexagonais aos bilhões, insinuando-se nas frinchas das paredes e janelas da sua casa, levando à exaustão as fornalhas instaladas nos porões. O frio é combativo -não quer deixar que o motor do seu carro "pegue" de manhã e, tão logo você dê a partida, obstruirá seu caminho com neve e gelo. O frio traz consigo todo um mundo de sujeira, sal e areia, todo um arsenal de roupagens caras e incômodas: cachecóis, protetores de orelha, botas e luvas forradas, "parkas", "leggings", ceroulas e gorros. Se algum desses itens não existir por aí -bem, seja grato por isso. O volume extra desses itens grossos e desajeitados de roupagem de inverno complica as ocasiões de contato social. Há um espaço exclusivo para eles em restaurantes, teatros e escolas: o roupeiro. Para as crianças em idade escolar, o roupeiro é uma misteriosa câmara de transição, onde o ato de despir-se sempre dá lugar a alguma arruaça: há um forte e inesquecível odor semi-sexual, de lã molhada e borracha congelada. Para os adultos, a gorjeta ao funcionário encarregado é uma despesa a mais nas já custosas noitadas no centro. Certa vez estive na Rússia no final de novembro e não pude deixar de sentir pena das pobres "babushkas", que vacilavam sob o monte de casacos pesados que os espectadores da ópera deixavam a seu cargo. No Brasil, a pele está logo abaixo da roupa -e isso quando está; o "eu" vestido e o "eu" desnudo não vivem uma dicotomia dramática. Em climas invernais, há uma infinidade de envoltórios: uma vez dentro de casa, a crisálida acolchoada e peluda é retirada para revelar uma borboleta brilhante de roupas menos pesadas, algo à maneira das iranianas e sauditas ricas, que, uma vez chegadas à casa de amigas, livram-se das vestes opacas a que a regra muçulmana as obriga para exibirem os modelos cintilantes de Paris. Cria-se a duplicidade. Ao tentar congelar-nos, o frio nos torna fervilhante e puritanamente conscientes do corpo, na mesma medida em que cada membro luta por manter-se aquecido em seu obscuro refúgio. O frio gera todo um código de abrigo e aquecimento: antes do advento do aquecimento central, a lareira era o centro da casa, o lugar onde todos os membros da família se reuniam. Os estalos da madeira estalando em chamas ainda são signos de hospitalidade e festividade, enquanto que velhas cerimônias de consumo de álcool e cafeína ainda giram em torno da noção de "esquentar-se". O habitante de climas frios tem sempre a sensação de ser um bravo e engenhoso sobrevivente. Nas ruas cobertas de neve e varridas pelo vento, transeuntes encapotados cumprimentam-se com o ar de camaradagem de soldados em missões perigosas. O frio desafia o sangue, põe a tremer as bochechas, faz o cérebro funcionar. Ao tornar o interior das casas um lugar aconchegante, o frio estimula a atividade intelectual. Na Europa, as estatísticas referentes ao público leitor despencam conforme se avança rumo a latitudes sulinas, conforme o clima convida os cidadãos a saírem de casa -para o café na calçada, para o passeio público ou para a praia inculta. Gosto do inverno porque ele me tranca em casa com meus livros, meu computador e meus gélidos pensamentos. Há uma poesia visual que acompanha o frio. Folhas e estrelas de gelo aparecem misteriosamente nas janelas e ocupam seu lugar na mitologia infantil, ao lado de gotas congeladas, bonecos e batalhas de neve, Papai Noel com seu trenó. Das peças escuras que eram em minha infância, as roupas de inverno da era do dácron e do "goretex" tornaram-se brilhantes e coloridas, tanto que uma turma de crianças esperando o ônibus escolar de manhã parece mais um bando de palhaços em miniatura (já os adolescentes dão a medida de sua audácia ao vestirem-se tão tenuamente quanto possível; nos meus tempos de faculdade em Harvard, caía no opróbrio quem vestisse algo mais que um casaco esporte com camisa, gravata e calças cáqui). Toda uma gama de equipamentos esportivos emerge para arrancar alegria ao frio: trenós, patins, esquis, "snowboards". Contribui para o espetáculo o trabalho dos tratores, trabalhando a noite inteira para acumular os montes de neve nos acostamentos; e os meteorologistas da TV, pomposamente adornando suas previsões com todos os recursos de computação gráfica, ficam quase histéricos quando se aproxima uma nova tempestade de inverno. A visão de um mundo novo e fantástico, criado pelas nevascas, compensa os muitos dias de desconforto entorpecente. E a natureza, mesmo quando sufocada pelo abraço do frio, não deixa de exibir os sinais da vida que persiste: passarinhos cantando, brotos de plantas emergentes, pegadas de raposas e veados. O frio tem o valor filosófico de lembrar aos homens que o universo não nos ama. O espaço é dominado por um frio tão absoluto quando a tumba escura; o Sol é uma contingência local, e a Lua está aí para nos lembrar que a matéria é quase toda destituída de vida. A maior parte da produção calórica do corpo é consumida no esforço de manter a temperatura do próprio corpo. O frio é nosso velho companheiro: o homem pré-histórico desenvolveu sua arte e sua tecnologia à beira dos glaciares. Voltar para dentro de casa depois de nos expormos ao frio duro, hostil e implacável nos faz sentir gratidão pelos abrigos da vida civilizada, pelas ilhas de calor em que podemos gozar a vida. Tradução de Samuel Titan Jr. Texto Anterior: O frio, o calor e o fim dos tempos Próximo Texto: Entenda por que faz tanto frio e tanto calor Índice |
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