São Paulo, domingo, 3 de março de 1996
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Noites brancas do universo hostil

JOHN UPDIKE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Pouco antes de minha visita ao seu fabuloso país, um brasileiro me disse que "os americanos não entendem a inflação, assim como os brasileiros não entendem o frio". Ouvi dizer que não há mais inflação no Brasil, mas ainda há frio de sobra na América do Norte. Recentemente as temperaturas na Nova Inglaterra estiveram por volta de 0ø Fahrenheit; em algumas partes do Meio-Oeste, desceram a 30º ou 40º abaixo de zero; e até mesmo na Flórida, onde o verão perpétuo supostamente impera, a temperatura andou abaixo do nível de congelamento, pondo a perigo laranjas, morangos e crocodilos.
O frio é uma ausência, uma ausência de calor, e entretanto faz-se sentir como uma presença -uma presença hostil e vigorosamente ativa sobre seu rosto exposto, suas mãos e pés (a despeito de luvas e botas). O frio parece estar sempre em ação, ocupado em congelar a água em lagos e rios, moldando flocos de neve hexagonais aos bilhões, insinuando-se nas frinchas das paredes e janelas da sua casa, levando à exaustão as fornalhas instaladas nos porões. O frio é combativo -não quer deixar que o motor do seu carro "pegue" de manhã e, tão logo você dê a partida, obstruirá seu caminho com neve e gelo. O frio traz consigo todo um mundo de sujeira, sal e areia, todo um arsenal de roupagens caras e incômodas: cachecóis, protetores de orelha, botas e luvas forradas, "parkas", "leggings", ceroulas e gorros. Se algum desses itens não existir por aí -bem, seja grato por isso.
O volume extra desses itens grossos e desajeitados de roupagem de inverno complica as ocasiões de contato social. Há um espaço exclusivo para eles em restaurantes, teatros e escolas: o roupeiro. Para as crianças em idade escolar, o roupeiro é uma misteriosa câmara de transição, onde o ato de despir-se sempre dá lugar a alguma arruaça: há um forte e inesquecível odor semi-sexual, de lã molhada e borracha congelada. Para os adultos, a gorjeta ao funcionário encarregado é uma despesa a mais nas já custosas noitadas no centro. Certa vez estive na Rússia no final de novembro e não pude deixar de sentir pena das pobres "babushkas", que vacilavam sob o monte de casacos pesados que os espectadores da ópera deixavam a seu cargo.
No Brasil, a pele está logo abaixo da roupa -e isso quando está; o "eu" vestido e o "eu" desnudo não vivem uma dicotomia dramática. Em climas invernais, há uma infinidade de envoltórios: uma vez dentro de casa, a crisálida acolchoada e peluda é retirada para revelar uma borboleta brilhante de roupas menos pesadas, algo à maneira das iranianas e sauditas ricas, que, uma vez chegadas à casa de amigas, livram-se das vestes opacas a que a regra muçulmana as obriga para exibirem os modelos cintilantes de Paris. Cria-se a duplicidade. Ao tentar congelar-nos, o frio nos torna fervilhante e puritanamente conscientes do corpo, na mesma medida em que cada membro luta por manter-se aquecido em seu obscuro refúgio.
O frio gera todo um código de abrigo e aquecimento: antes do advento do aquecimento central, a lareira era o centro da casa, o lugar onde todos os membros da família se reuniam. Os estalos da madeira estalando em chamas ainda são signos de hospitalidade e festividade, enquanto que velhas cerimônias de consumo de álcool e cafeína ainda giram em torno da noção de "esquentar-se". O habitante de climas frios tem sempre a sensação de ser um bravo e engenhoso sobrevivente. Nas ruas cobertas de neve e varridas pelo vento, transeuntes encapotados cumprimentam-se com o ar de camaradagem de soldados em missões perigosas. O frio desafia o sangue, põe a tremer as bochechas, faz o cérebro funcionar. Ao tornar o interior das casas um lugar aconchegante, o frio estimula a atividade intelectual. Na Europa, as estatísticas referentes ao público leitor despencam conforme se avança rumo a latitudes sulinas, conforme o clima convida os cidadãos a saírem de casa -para o café na calçada, para o passeio público ou para a praia inculta. Gosto do inverno porque ele me tranca em casa com meus livros, meu computador e meus gélidos pensamentos.
Há uma poesia visual que acompanha o frio. Folhas e estrelas de gelo aparecem misteriosamente nas janelas e ocupam seu lugar na mitologia infantil, ao lado de gotas congeladas, bonecos e batalhas de neve, Papai Noel com seu trenó. Das peças escuras que eram em minha infância, as roupas de inverno da era do dácron e do "goretex" tornaram-se brilhantes e coloridas, tanto que uma turma de crianças esperando o ônibus escolar de manhã parece mais um bando de palhaços em miniatura (já os adolescentes dão a medida de sua audácia ao vestirem-se tão tenuamente quanto possível; nos meus tempos de faculdade em Harvard, caía no opróbrio quem vestisse algo mais que um casaco esporte com camisa, gravata e calças cáqui). Toda uma gama de equipamentos esportivos emerge para arrancar alegria ao frio: trenós, patins, esquis, "snowboards". Contribui para o espetáculo o trabalho dos tratores, trabalhando a noite inteira para acumular os montes de neve nos acostamentos; e os meteorologistas da TV, pomposamente adornando suas previsões com todos os recursos de computação gráfica, ficam quase histéricos quando se aproxima uma nova tempestade de inverno. A visão de um mundo novo e fantástico, criado pelas nevascas, compensa os muitos dias de desconforto entorpecente. E a natureza, mesmo quando sufocada pelo abraço do frio, não deixa de exibir os sinais da vida que persiste: passarinhos cantando, brotos de plantas emergentes, pegadas de raposas e veados.
O frio tem o valor filosófico de lembrar aos homens que o universo não nos ama. O espaço é dominado por um frio tão absoluto quando a tumba escura; o Sol é uma contingência local, e a Lua está aí para nos lembrar que a matéria é quase toda destituída de vida. A maior parte da produção calórica do corpo é consumida no esforço de manter a temperatura do próprio corpo. O frio é nosso velho companheiro: o homem pré-histórico desenvolveu sua arte e sua tecnologia à beira dos glaciares. Voltar para dentro de casa depois de nos expormos ao frio duro, hostil e implacável nos faz sentir gratidão pelos abrigos da vida civilizada, pelas ilhas de calor em que podemos gozar a vida.

Tradução de Samuel Titan Jr.

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