São Paulo, domingo, 3 de março de 1996
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Entenda por que faz tanto frio e tanto calor

RICARDO BONALUME NETO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Por que faz frio demais nos EUA ou na Bósnia, calor no Brasil, além de ocorrerem dilúvios justamente nas favelas em encostas cariocas ou nas margens do rio Tietê?
Em caso de dúvida, faça como muitos meteorologistas: ponha a culpa no El Niño -ou na sua ausência, ou na sua chegada prematura ou atrasada.
El Niño é o nome da mais famosa das variações em escala de alguns anos do clima mundial.
Basicamente, trata-se do deslocamento de uma quantidade de água mais quente no Oceano Pacífico ao longo da costa sul-americana. Essa água se expande para leste em geral em dezembro. Esse calor adicional no mar faz com que massas de ar sejam deslocadas e afetem o clima em outros pontos do planeta. Acontece de modo geral a cada cinco ou seis anos.
Pode haver tanto seca como chuva em excesso, dependendo do local.
E quando não é menino, é menina. Também existe uma La Niña, que esfria a água do mar e pode ter efeitos secundários como secas ou chuvas -também dependendo do local.
Embora seja possível fazer previsões razoáveis sobre o tempo dos próximos dias, em escalas de tempo maiores esse conhecimento é ainda "experimental".
Saber o que se passará no clima futuro -no próximo verão, no próximo ano, ou na próxima era glacial- ainda é uma área de pesquisa em revolução permanente.
As previsões dos fenômenos El Niño são uma das poucas, nessas escalas de tempo maiores, razoavelmente bem-sucedidas.
Felizmente para os meteorologistas que se enganaram, e infelizmente para a previsão em geral, o El Niño não é o único fenômeno sazonal. Variações no tempo podem ocorrer por outros motivos específicos, o que obriga os pesquisadores a prestar atenção em praticamente tudo.
A agricultura dos EUA perde algo como US$ 9,5 bilhões por causa de um El Niño. A agência americana Noaa (Administração Nacional do Oceano e da Atmosfera) estima que de 15% a 20% dessa perda pode ser evitada com uma previsão do tempo que esteja certa 3 em cada 4 vezes.
As chuvas fora do comum de 1982-1983 devidas ao fenômeno causaram mais de US$ 13 bilhões de dólares de prejuízos em todo o mundo, diz a Noaa.
O El Niño causa invernos mais quentes que o normal nos EUA, e inundações no Golfo do México. Já os furacões parecem surgir mais quando o fenômeno apresenta uma fase fria.
O Brasil demorou para entender o valor econômico de previsões do tempo de vários dias, apesar de ter grande extensão territorial e diversidade climática.
O resultado foi a criação do Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos (Cptec), do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
O centro tem um supercomputador fabricado pela NEC Corporation do Japão, com capacidade de processar até 3,2 bilhões de operações aritméticas em ponto flutuante por segundo.
A posse do supercomputador, diz o Inpe, "significa possibilidade de utilizar modelos numéricos para simulação de tempo e clima, integrando informações atmosféricas e oceânicas. O resultado disso são previsões de tempo confiáveis, para todo o país".
Por que um supercomputador? Pela quantidade de dados que precisam ser mastigados.
A primeira fase da previsão de tempo é a coleta de dados básicos em uma escala global: temperatura, ventos, pressão, umidade. As fontes são as mais variadas, desde bóias marítimas, balões de sondagem ou plataformas terrestres, até satélites meteorológicos em órbita geoestacionária, como os americanos da série Goes, e em órbita polar, como os da série Noaa.
Depois disso vem o "pré-processamento" dos dados obtidos, uma espécie de controle de qualidade da informação. A previsão propriamente dita começa quando os dados já depurados são levados ao supercomputador. Um modelo numérico utilizando equações complicadas faz o relacionamento dos dados entre si -chuva aqui, sol lá, vento ali do lado, massa polar se movendo etc.-, prevendo como o sistema se comportará no futuro.
Depois de ter os dados "mastigados" pelo computador, vem a etapa do "pós-processamento", na qual os cálculos obtidos são transformados por exemplo em imagens. A fase final do processo é a disseminação dos resultados, por exemplo nas páginas de um jornal.
A ciência e a tecnologia também ajudaram a mudar o clima. A industrialização e a agricultura intensiva produzem gases que modificam o comportamento da atmosfera. Por exemplo, nuvens escuras de fumaça absorvem em vez de refletir a radiação solar. Os gases causadores do efeito estufa, como o gás carbônico, também contribuem para aprisionar a radiação. A mudança prevista de alguns graus Celsius seria maior que a variação natural dos últimos 15 mil anos.
Essa variação natural também é pouco entendida.
O mundo vive hoje um período "interglacial". Eras glaciais são períodos na história do planeta em que houve um esfriamento generalizado. A última começou há 2,5 milhões de anos e teria acabado, segundo muitos cientistas, faz 10 mil anos -ou seja, exatamente quando começaram a surgir as primeiras civilizações. Há quem diga que essa idade do gelo ainda esteja terminando. Trombaria com o efeito estufa induzido por seres humanos.
Uma era glacial acontece a cada 150 milhões de anos e dura alguns milhões deles. Suas prováveis causas ainda são debatidas. A hipótese mais aceita diz que elas se devem à rotação da galáxia em que está o sistema solar -a Via Láctea. O Sol e os planetas se moveriam por regiões do espaço com diferentes densidade de poeira cósmica e campos gravitacionais e magnéticos distintos.
Outro fenômeno em escala planetária é a movimentação dos continentes. Quando a África, a Índia e a Arábia "grudaram" na Eurásia, foi possível a correntes oceânicas frias da Antártida percorrerem o globo.
Para tornar o cálculo mais difícil, existem ciclos que ocorrem a cada 100 mil anos, que dependem de mudanças na órbita terrestre.
Quanto mais entende o tempo, mais a ciência encontra fatores que o modificam e aumentam a dúvida. Não é por nada que essa área é um bom mercado para médiuns e charlatães.

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