São Paulo, domingo, 3 de março de 1996
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O inverno de 1981

RICHARD FORD
ESPECIAL PARA A FOLHA

Era numa época em que meu casamento ainda era feliz.
Morávamos numa cidade grande, no Nordeste. Era inverno. Fevereiro. O mês mais frio. Eu, é claro, ainda tentava escrever, e minha mulher trabalhava como tradutora para uma pequena editora especializada em textos científicos tchecos. Estávamos casados havia dez anos e ainda gozávamos aquela estranha e radiante ilusão de que tínhamos afinal sobrevivido às piores provações da vida.
O apartamento que alugamos estava situado na região das antigas fábricas, no extremo sul da cidade; sua área interna restringia-se a um grande salão vazio, janelas altas na frente e nos fundos, e pouquíssima luz. Somente a luz natural, nada mais. Um famoso diretor de teatro de vanguarda morara antes no local e aí costumava encenar suas curiosas peças niilistas, de modo que todas as paredes estavam pintadas de preto e, ao longo de uma delas, ainda se via uma platéia com cadeiras para seu seleto público. Nossa cama de casal escondia-se num pequeno canto escuro, onde aproveitamos um pouco do antigo cenário para nossa própria privacidade, apesar de não haver, é claro, ninguém de quem fosse preciso resguardar a privacidade.
À noite, quando minha mulher voltava do trabalho, saíamos ao frio das ruas e escolhíamos um restaurante para jantar. Depois, parávamos durante uma hora num bar qualquer e, entre cafés e conhaques, conversávamos intensamente sobre as traduções em que minha mulher trabalhava no momento, mas nunca (graças a Deus) sobre o trabalho que então já era incapaz de realizar.
Nossa vontade, escusa dizer, era permanecer o máximo possível fora do apartamento. Não apenas porque quase não houvesse luz em seu interior, mas porque toda noite, às sete em ponto, o proprietário do prédio desligava o aquecimento, de modo que às dez o frio era tanto que só restava enfiar-se na cama, sob uma pilha de cobertores, sem mal poder se mexer. Minha mulher, naquela época, trabalhava durante horas a fio e estava sempre cansada, e embora às vezes voltássemos para casa ligeiramente bêbados e fizéssemos amor sob os cobertores, naquele canto frio e escuro, quase sempre ela despencava exausta na cama e começava a roncar muito antes de eu poder deitar-me ao seu lado.
E, assim, muitas vezes -em muitas noites frias daquele inverno, no quarto imenso e deserto-, eu permanecia acordado, sem pregar os olhos, sob o efeito do café forte de que me encharcara. E, muitas vezes, simplesmente caminhava de janela a janela, com a vista grudada na noite lá fora, na rua deserta ou no céu fantasmagórico que rebrilhava à luz cintilante refletida pelos prédios da cidade, barrados de meu campo de visão. Trazia nos ombros um cobertor, ou às vezes dois, e nos pés vestia as meias grossas e pesadas que guardara de minha infância.
Foi numa dessas noites frias, pelas janelas dos fundos do apartamento -janelas que davam primeiro para um beco e, depois, mais adiante, por sobre um terreno onde fora demolida uma fábrica de telégrafos, para os prédios da rua ao lado da nossa-, que eu vi, no interior de um quarto banhado por uma luz amarela, a figura de uma mulher despindo-se vagarosamente -ao que tudo indica, sem consciência do mundo exterior.
Eu, é claro, por causa da distância, não podia vê-la com nitidez; podia apenas notar que era de estatura baixa e aparentemente magra, com cabelos curtos e negros -uma mulher mignonne, em todos os sentidos. A luz descorada de seu quarto fazia sua pele parecer bronzeada e singularmente brilhante, fazia seus movimentos pela janela adquirirem contornos estilizados e ligeiramente irreais, como os movimentos de uma silhueta ou de um filme antigo.
Eu, porém, sozinho no escuro gélido, enrolado em cobertores que protegiam minha cabeça como um xale, e com minha mulher dormindo, inconsciente, a apenas alguns passos de distância -eu fui arrebatado por tal visão. Num primeiro momento, aproximei-me do vidro frio. Mas então, pressentindo que podia ser flagrado, apesar da remota distância, retrocedi alguns passos para dentro do quarto. Por fim, cheguei mesmo a apagar a luz do abajur sobre o criado-mudo que minha mulher mantinha ao lado de nossa cama, para ser totalmente envolto pela escuridão. Após alguns minutos, fui até uma gaveta e encontrei o par de binóculos de teatro, folheados a prata, que o diretor teatral nos deixara; levei-os à janela e observei a mulher através do espaço escuro, mergulhado eu próprio na escuridão.
Não me lembro de tudo o que pensei. Sem dúvida, estava sexualmente excitado. Sem dúvida, emocionava-me com o segredo de espreitar, imerso no escuro. Sem dúvida, gostava do ilícito da situação, de minha mulher dormindo ao lado, sem ter idéia do que eu fazia. Acho possível até que gostasse do frio que me envolvia tão palpavelmente, de maneira tão inexorável quanto a noite; talvez sentisse até que a imagem da mulher -que tomava por jovem, sem cuidados nem discrição- prendia-me de alguma forma, isolava-me e fazia parar o próprio mundo, para então quantificá-lo como dois pólos, conectados por minha linha de visão. Hoje sei, é claro, que tudo isso tinha a ver com meus fracassos iminentes.
Nada mais aconteceu. Nas noites que se seguiram, entretanto, permaneci acordado para observar a mulher, aguardando que minha esposa se recolhesse ao sono de seu cansaço. A cada noite, durante uma semana, ela aparecia à janela e lentamente despia-se em seu quarto (que nunca tentei imaginar, embora na parede às suas costas houvesse algo semelhante a um esboço de um cervo). Após livrar-se de suas roupas, expondo seus ombros ossudos, seus pequeninos seios, suas pernas delgadas, seu tórax e sua barriga levemente abaulada, a mulher esquadrinhava o chão sob a luz mortiça, seguindo o que me parecia ser uma espécie de dança lenta e ritual, ou então os passos de movimentos provavelmente teatrais, erguendo, curvando e estendendo seus braços e arqueando a nuca, enquanto suas mãos executavam gestos graciosamente cadenciados, que não compreendia nem tentava fazê-lo, tão absorto que estava com sua nudez e com a visão ocasional do tufo de cabelos negros entre suas pernas. Tudo não passava de excitação, segredo e uma pitada de ilicitude, nada mais.
Isso durou uma semana, como disse, e então parei. Não sei o que me fez parar. Uma noite, simplesmente, como sempre enrolado em cobertores, fui até a janela com meus binóculos e vi as luzes acesas através do espaço vazio. Por alguns instantes, não vi ninguém do outro lado. E, então, sem nenhuma razão específica, virei-me e entrei nos cobertores ao lado de minha mulher, que já se aquecera e cheirava a conhaque e suor, e dormi sem pensar em olhar novamente pela janela.
Há, é claro, um epílogo.
Uma tarde, depois de uma semana que abandonara meus hábitos indiscretos, larguei minha mesa num momento de desespero e frustração e saí ao frio, caminhando a passos largos por entre a série de lojas da moda, onde os antigos prédios estavam sendo remodelados para abrigar novas confecções e galerias de arte. Segui diretamente para o rio, então obstruído por enormes blocos de gelo cinzento. Passei pelos prédios da universidade e estive próximo ao local de trabalho de minha mulher. Como caía a noite, retornei à casa -minha cara rígida de frio, meus ombros retesados, minhas mãos sem luvas enregeladas e vermelhas. Ao dobrar o quarteirão, buscando um atalho para encurtar a viagem, encontrei-me inesperadamente face ao edifício que espreitara durante dias. Algo me fez reconhecê-lo, apesar de nunca tê-lo visto. E, de fato, bem nesse momento, logo em frente à majestosa porta de entrada, estava a mulher que observara durante noites a fio e da qual tirara tanto prazer e um certo consolo secreto. Evidentemente, conhecia seu rosto, pequeno, arredondado e -como pude ver- impassível. E para minha surpresa, mas não para meu desgosto, ela era velha. Tinha provavelmente uns 70 anos, ou mais. Uma japonesa, vestindo leves calças pretas e um leve agasalho preto, dentro dos quais devia estar com tanto frio quanto eu. Sem dúvida, devia estar congelando. Carregava sacos de supermercado que lhe pendiam dos braços e das mãos. Ao passar e lançar um olhar em sua direção, ela voltou-se e olhou-me de cima dos degraus, com uma expressão de completa indiferença mesclada a um mínimo de reconhecimento do perigo. Afinal, ela era velha. Talvez sentisse um impulso repentino de maltratá-la, e poderia facilmente fazê-lo. Mas, é claro, isso não passou por minha cabeça. Ela deu-me as costas e parecia apressada em girar a chave na fechadura. Olhou na minha direção mais uma vez, e ouvi a tranca da porta fechar-se com um baque profundo. Eu não disse nada, nem mesmo a encarei novamente. Não queria que ela suspeitasse do conteúdo de meus pensamentos. E, então, segui por onde o caminho já me levava.

Tradução de José Marcos Macedo.

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