São Paulo, domingo, 3 de março de 1996 |
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Loteria do sangue no dia mais quente do ano
PLINIO MARCOS
O corpo do negrão impede qualquer ventilação. E os outros que se danem. Ele é muito forte. Muito violento. Muito bravo. Ninguém reclama. E o calor fica cada vez mais sufocante. Alguém liga um radinho de pilha. É a hora das notícias. É a única forma de saberem do mundo. "O governo vai continuar negociando com os sem-terra. O governo vai continuar negociando com os sindicalistas. O governo vai continuar negociando com os índios." - Porra, esse governo só negocia, não resolve porra nenhuma. - Cala a boca, deixa a gente ouvir. "O presidente vai pra China. Vai pro México. Vai pros Estados Unidos. Vai pro Chile..." - O presidente devia ir... Não faz nada. - Cala a boca. Deixa a gente ouvir. "Os juízes de direito de Mato Grosso vão continuar em greve. Há três meses não recebem ordenado." - E os presos como ficam? Os capas pretas entram em greve e os presos? Mato Grosso é mais quente do que aqui. - Que se dane. Eu estou aqui. Aqui é que conta. - Vai dar o tempo. Cala a boca. "Hoje será o dia mais quente do ano. Os termômetros, por volta do meio-dia, vão marcar 38ø." Todos vaiam a notícia. Uma loucura. O radinho de pilha é desligado. - Na praia, com cerveja gelada. Sombra banho de mar. Mole. - Aqui e no inferno vai dar 80ø. Ou mais. Muito calor. Um escondido no meio do grupo reclama alto. - Com esse negrão na janela fica pior. - Sai daí, negrão. Todos gritam. O negrão se pica de raiva. - Tou aqui. Tou bem. Quem não gostar vem me tirar. Vou ficar aqui e fim de papo. Todos se calam. Os malandros se olham. Começam a usar o código dos cadeeiros. Sinais com a mão. Uma mão fechada com um dedão apertado em cima é o "A". Uma mão esticada e reta pra frente é o "B". O fura-bolo e o mata-piolho em arco é o "C". Assim a malandragem se entende. De repente, o ajuste estava feito. Todos puxaram os seus estiletes e avançaram no negrão. Espetaram o valente nas costas. Ele gritou. O sangue jorrou. Puxaram o negrão pra baixo, ele soltou os braços. Ficou preso pelas pernas. Os malandros cravaram as armas no coração. Mais sangue. O negrão já não era ninguém. Arrancaram as pernas dele das grades. Ele despencou. Os caídos chutaram o negrão com ódio. Com o esforço, o calor aumentou. O fedor fedeu mais. Sujos de sangue, os malandros disputam um lugar na janela. E dão a ordem. - Só quem fez o trabalho pode usar a bica. Os caídos chutaram a porta. A cana se apresentou. - Tá bom, o negrão caiu da janela? Tá bom. Eu acredito. Não vai fazer falta. Mas não adianta. Pra vocês, não. Precisava sair uns 30 pra dar refresco. Depois tudo ficou como era. Calor. Muito calor. Fedor. Muito fedor. Todos tinham entendido o que o cana falou. Trinta a menos. Os malandros voltaram a se entender com as mãos. Fizeram novo acerto. Matar dois por noite. Primeiro sortear os que estão no bico do corvo, os que estão com Aids. Depois os tuberculosos. Depois os chatos. Depois... Naquela noite foram dois. Antes de escutarem as notícias no radinho de pilha, a cana veio buscar os sorteados. Dois aidéticos. Alguém cantou as pedras. - Menos três. O carcereiro levou o recado pros chefias. - Eles pediram pra avisar a imprensa. Ninguém suporta o calor. Eles estão loucos. Vão matar dois por noite. Texto Anterior: O inverno de 1981 Próximo Texto: Dúvidas para os pensadores do próximo milênio Índice |
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