São Paulo, terça-feira, 5 de março de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

De rabo para o leitor

JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI

No último dia 27, na página 1-4, a Folha publica em manchete: "FHC diz ser preciso quebrar clientelismo". Na coluna ao lado informa como o presidente, ao receber os membros do Conselho Nacional de Educação, sublinha a necessidade de uma política anticlientelista. Seguem-se informações a respeito da formação do novo Conselho e algumas palavras que eu mesmo proferi em nome de meus colegas. De baixo da manchete, um quadro sob o título "Os laços do poder", com uma lista de 12 pessoas ligadas ao presidente.
Depois, outra manchete: "FHC amplia o grupo de amigos que assessoram seu governo -Giannotti, filósofo, entra no Conselho Nacional de Educação". A matéria completa a lis ta dos amigos no poder, indicando seus respectivos salários. No que me diz respeito, esclarece que "Não foi informado se Giannotti terá salário".
É óbvio o sentido da notícia, transmitido pelas manchetes, matérias e diagramação: o presidente critica o clientelismo, mas engorda o governo com amigos. E assim a Folha exerce sua independência, mandando pau no presidente de discurso enganador, e nos amigos, inclusive em mim, atraídos para o círculo do poder.
Todos somos apresentados como se tivéssemos cavado uma bela sinecura. Mas o fato de ser amigo é óbice para que um profissional competente preste serviços ao governo? A notícia, para ser correta, não implicaria uma análise das respectivas competências?
No meu caso, porém, a notícia não sugere um sentido diferente do que acontece por estar incompleta. É falsa, caluniosa e destrói o significado que tenho tentado imprimir à minha vida pública. Não passo a assessorar o governo, pois fui nomeado para um órgão do Estado, com mandato de quatro anos, período que ultrapassa a atual administração, e fui escolhido numa lista entre nomes votados pelas sociedades científicas, na qual figuro entre os segundos mais votados.
"Mutatis mutandis" um presidente não pode nomear para o Supremo Tribunal Federal um jurista ilustre porque é seu amigo? Deve ele só cultivar amigos obscuros? Ou a nomeação de amigos para altos cargos é privilégio dos donos de jornal?
Em sua defesa a Folha dirá que a velocidade do jornalismo moderno não pode distinguir governo e Estado e que, no meu caso, tenho aparecido como o amigo do presidente.
Quanto ao primeiro ponto, creio que um jornal deve informar, obrigando-se, para dar uma notícia correta, a chegar aos pormenores necessários para isso. E tenho a impressão que um projeto editorial implica também uma função didática, que aliás deve começar preparando adequadamente seus próprios funcionários.
Em segundo lugar, se é a mídia que desenhou minha imagem pública como o amigo, em prejuízo de minhas outras qualidades ou defeitos, não posso ser malhado pelo que a própria mídia frisou com o intuito sensacionalista de vender jornais.
Ao destacar meu nome entre os 22 que foram nomeados para o Conselho, a Folha também deveria ter informado que participo da política universitária desde meus tempos de estudante. Em 1953, na qualidade de secretário da Cultura da UEE, organizei um debate pressionando para a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases apresentada por Clemente Mariani, e relatei essa questão no congresso da UNE, rea lizado em Goiânia; participei da Associação dos Docentes da USP; fui cassado dessa universidade pelo regime militar, também porque estava metido até o pescoço na reforma da universidade.
Participei da Comissão de Alto Nível para a Reforma Universitária, nomeada pelo ex-presidente José Sarney, cuja experiência me permitiu escrever o opúsculo "Universidade em tempo de barbárie"; fui vice-presidente da Adusp, membro do Conselho da SPBC, do Conselho Deliberativo do CNPq; do Conselho da Finep, ocu pando tais cargos, na maioria das vezes, sendo eleito pela comunidade.
E os artigos que escrevi sobre educação, inclusive neste jornal? Acredito que, mesmo não tendo essa militância, qualquer presidente que não fosse discricionário teria motivos suficientes para me indicar para uma câmara de ensino superior a partir de uma lista apresentada pela comunidade, neste momento em que se trata de aprovar uma nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e em que se pensa em reformar a universidade. Se não tenho densidade para o cargo, se somente escrevo porcarias, por que este mesmo jornal me dá tanto espaço? Por que sou amigo dos donos? Querem me transformar em filósofo da corte, depois de me terem transformado em filósofo da redação?
Desculpe-me leitor por apresentar meus títulos, mas a Folha simplesmente faz crer que fui escolhido por ser amigo do presidente. E ainda deixa de informar que não receberei salário, apenas ajuda de custo para despesas de viagem, para trabalhar, só em Brasília, de três a quatro dias por mês, a fim de ajudar a julgar 4.000 pedidos de novos cursos, 43 pedidos de instalação de novas universidades, assim como discutir toda a política educacional do governo. Bela sinecura acabei arrumando. Qual foi meu intuito de aceitar a indicação? Posto que acredito que um intelectual, mesmo apoiando um governo, em geral presta melhores serviços ao país permanecendo longe dele, interessei-me por um foro do qual poderia me manifestar como representante da sociedade civil, embora pudesse ter acesso pormenorizado aos dados que fossem sendo criados pelas políticas em curso.
As manchetes da Folha tentam reduzir a pó este meu esforço, igualando-me, assim como todos os outros amigos de FHC convocados para o governo, a um cliente que precisa de um emprego público.
A questão crucial, porém, me parece a seguinte: a linha editorial da Folha, como já denunciei noutros tempos, é niilista, antropofágica e cínica. Para evitar qualquer engajamento que inevitavelmente decorre de uma prática pública, imagina que pode exercer sua independência suspendendo qualquer juízo de valor.
Como só se percebe uma ação humana de um ponto de vista, pretende equilibrar suas perspectivas distribuindo equitativamente pauladas em todos os agentes. Nesse contexto notícia é o deslize. O jornalista passa a ser um gafanhoto à procura de tropeços na vida pública, sempre correndo perigo de virar um carreirista, de inventar notícias para agradar aos chefes.
Este simulacro de independência termina passando por cima de tudo o que é novo; em particular ignora aquelas tendências da cultura brasileira que procuram tomar distância das práticas do correntio. Isto porque o deslize não dá muito trabalho para ser detectado e informado, enquanto o novo requer a busca paciente, amorosa, de uma vereda que se esboça. Dando uma no cravo e outra na ferradura, com o medo insano de tomar partido, a Folha de hoje termina por quebrar a ferradura e ferir o pé do cavalo. Seu simulacro de independência faz dela, em virtude de seu tamanho e significado cultural, o jornal mais conservador e reacionário do país, precisamente no momento em que ela se maquia com todas as cores.
A Folha, porém, não liderou o movimento das diretas já, não iniciou o processo contra Collor e assim por diante? Não estou ignorando seu passado glorioso, mas tentando mostrar que seu projeto editorial envelheceu e se esgotou, a revolução dos garotos hoje em dia virou prática rotineira, cujos paradigmas são senhores bem postos nas suas respectivas desilusões e cujos atores são uns moleques despreparados, incapazes de seguir o fio de uma notícia até o fim. Aquela independência às custas de distribuir porradas por todas as partes podia ter sucesso quando o Brasil andava quebrado economicamente, mergulhado num jogo político de soma zero. A tática consistia em se distanciar da "melé" até que espasmos de renovação aparecessem.
Mas quando as transformações econômicas passaram a se fazer cautelosamente e sem barulho; quando o próprio processo político, sob a capa de uma aparência desregrada, começa a desenhar uma nova configuração partidária e novas formas de representação; quando toda uma sociedade tenta reforçar seus laços institucionais, o jornalismo do deslize foi simplesmente superado. E a velocidade com que a notícia é preparada para que a Folha seja a primeira a informar afeta a qualidade dessa informação, faz do jornal um objeto descartável, estímulo visual a ser compreendido pela metade.
O jogo das manchetes e das informações com o qual iniciei este artigo exemplifica o esgotamento dessa linha editorial. Ao anunciar minha entrada no Conselho Nacional de Educação, o faz como se eu estivesse recebendo uma prebenda, sem atentar para a trabalheira do cargo e para meus esforços em colaborar para que um intelectual possa ter figura pública.
O diabo é que este meu protesto, este meu desespero de cair fora do enquadramento de manchetes é de imediato incorporado pela lógica pública e pessoal do jornal. Ele vai encenar sua vocação democrática ao publicar este artigo, o Otavio vai esfregar as mãos diante da oportunidade de exercer seus talentos de polemista e o Luiz fará o cálculo de quanto uma boa polêmica rende por mês. Macaco Simão, talvez só você possa me salvar, com as armas do ridículo, do rolo compressor do jornal-capital.

Texto Anterior: PODER ILUSÓRIO; NÃO PRECISAVA; PETECA
Próximo Texto: Contestações; Previdência dos congressistas; Nova Folha; Mamonas
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.