São Paulo, sexta-feira, 8 de março de 1996
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Fim do império

STVÁN JANCSÓ

a comunidade dos estudiosos da história luso-brasileira foi brindada com uma obra de impacto, o que não é dizer pouca coisa. No alentado volume de mais de 800 páginas, Valentim Alexandre, em 16 capítulos distribuídos por seis partes, precedidas de uma "Introdução Geral" e seguidas das "Conclusões" (mais "Documentação" e "Bibliografia"), recoloca sob novo viés um dos problemas angulares das historiografias brasileira e portuguesa: o da desagregação do sistema luso-brasileiro.
Este tema permanente, revitalizado desde os estudos de Fernando Novais (1) (com os debates que se lhe seguiram), tem se desdobrado numa revisão profunda das condições históricas da formação do Estado nacional brasileiro. E é da maior importância que o debate seja enriquecido por um outro olhar, o metropolitano. Pois tal é o objetivo do historiador luso: renovar os termos da compreensibilidade do moderno nacionalismo português. Com isso, seu trabalho integra-se no desafio de sua geração, envolvida na radical alteração de parâmetros que informam a identidade política coletiva da nação portuguesa (democratização política, colapso do império colonial, integração na Comunidade Européia).
Uma obra historiográfica encontra seu maior ou menor mérito na qualidade nela realizada em descrever a complexidade do movimento de reiteração da vida social. Isso implica tanto no trato minucioso, quanto no ordenamento consistente da tessitura cambiante das relações de variada natureza que os homens mantêm entre si. Trata-se do captar (e descrever) das relações mediatizadas por instrumentos de ação coletiva criados e transformados pelos homens, tanto os de caráter objetivo quanto aqueles portadores das subjetividades (incluindo-se, aí, as representações coletivas de nação, e dos discursos por elas conformados), e que se erigem em referências para as opções diante das alternativas que da sua própria prática resultam.
O diálogo com o presente representa sempre a introjeção de uma variável externa ao processo histórico estudado e não há como fugir disso. E nem reside na natureza inelutavelmente contemporânea da práxis historiográfica o risco que cabe ao historiador enfrentar. Afinal, para fazer face ao risco, os procedimentos a serem observados já estão dados, pela via da formulação precisa do problema a ser esclarecido, do estabelecimento razoado das amplitudes temporal e espacial do fenômeno humano cuja trajetória se busca desvendar e, finalmente, do domínio consistente do instrumental teórico e metodológico do qual se vai lançar mão.
Os limites temporais do estudo de Valentim Alexandre balizam os cerca de 40 anos que permeiam a última década do Setecentos e início da década de 30 do século seguinte, sendo que a atenção do autor está centrada no "primeiro quartel do Oitocentos, ou seja, no próprio processo de desagregação do império luso-brasileiro, analisado em pormenor -um processo que constitui em si uma unidade bem delimitada, com princípio, meio e fim" (2). Disso resulta uma periodização que perpassa a organização expositiva: do final do século 18 até a transferência da Corte para o Rio de Janeiro (1808); a etapa da agudização das contradições internas do sistema imperial (1808 a 1820) e ao final, o desenlace da crise (1820-1831).
No que diz respeito à formulação do problema, o autor é preciso. O eixo de seu interesse está na imbricação das questões colonial e nacional enquanto categorias nucleares da constituição histórica da identidade nacional portuguesa. Com isso, estabelece a estrutura matricial das identidades-alteridades que vai operar. Por um lado, destaca a polaridade anunciada no plano da consciência de pertencimento à nação nas diversas configurações particulares interiores a um Estado cuja unidade reside na legitimidade dinástica da Casa de Bragança e a negatividade que aflora na esteira da erosão do tradicional papel coesivo da Monarquia. Por outro lado, avança na perquirição do caráter tendencialmente contraditório deste todo no plano da emergência da percepção socialmente ampliada (e profundamente traumática) do caráter subordinado da inserção do Reino português no sistema de Estados europeus.
O alcance do estudo, de seus méritos e eventuais limitações está na operacionalização do instrumental teórico e metodológico. Trata-se, inegavelmente, de uma obra que veio para ficar, enriquecendo o conhecimento do período. A quantidade e qualidade da documentação que serve de base para a análise indicam para o trabalho de um historiador de mérito. A elaboração, por meio da documentação diplomática, dos múltiplos significados da subordinação política à Inglaterra a determinar o peso (e limites de ação) da Monarquia lusa no grande jogo do equilíbrio europeu, articulando-os com as prioridades que orientavam a ação da diplomacia bragantina no esforço de desvendar a evolução das contradições entre os interesses das elites metropolitanas e coloniais, é plena de interesse.
É de destacar, também, a qualidade da descrição do movimento de passagem da prevalência do conceito Ancien Régime (Antigo Regime) de nação para outro, emergente, fundamento da soberania e encarnado no povo. E é instigante o desvendamento da evolução das implicações práticas das contradições entre ideário e estratégia liberais no trato da questão colonial, do que resultam, em primeiro lugar, o impasse político que se resolve na separação da parte americana do Império e, na esteira da dissolução do império euro-americano, no colapso do próprio regime liberal no Reino peninsular.
O reconhecimento destas qualidades e de outras que tornam a obra de Valentim Alexandre consulta obrigatória para quem venha a estudar o período, ou por ele se interesse, obriga que se apontem para alguns problemas. Dois merecem destaque especial.
O primeiro diz respeito à diferença na qualidade do trato dos elementos polares de sua análise: Portugal e Brasil. Ainda que a identidade nacional portuguesa esteja no centro de suas preocupações, com inevitáveis desdobramentos na escolha da documentação a servir de base para a análise, é difícil justificar que, por exemplo, se abra mão da documentação (ao menos daquela já conhecida) para avançar interpretações heterodoxas a respeito de questões como as "inconfidências" do final do século 18, no Brasil, a parte mais inconsistente do estudo.
A bibliografia específica que sustenta a sua análise restringe-se a uns poucos títulos da década de 70, os quais, apesar da qualidade, não sustentam a ambição da revisão anunciada. É esta recusa da documentação e da bibliografia pertinentes que o leva a simplificações no trato da participação dos deputados brasileiros nas Cortes Constituintes. Toma-os por expressões das diversidades regionais na América portuguesa (o que é correto). Mas quase não se dá conta de que estes deputados eram também agentes particulares de contraditórios processos de acumulação de experiência política no interior de um processo geral, abrangente a todos os particularismos (e correspondentes identidades) -a crise do Império.
É o que ressalta da bancada da Bahia, na qual dois de seus deputados estiveram envolvidos no ensaio de sedição de 1798 (Cipriano Barata e Francisco Agostinho Gomes), e outro, Borges de Barros, teve contato íntimo com os envolvidos, um dos quais era seu irmão. O deputado paulista Antonio Carlos Ribeiro de Andrada participou da Revolução Pernambucana de 1817, juntamente com o daí natural Francisco Muniz Tavares. Os presos em Pernambuco, por seu turno remetidos para a cadeia da Bahia, receberam aí suporte de locais, dentre eles, Cipriano Barata e, eventualmente, de outros tidos por simpatizantes da Revolução, dentre os quais Hermogenes de Aguilar Pantoja (outro condenado por envolvimento no 1798 baiano) e Alexandre Gomes Ferrão, um dos deputados da Bahia às Cortes. O deputado pelo Ceará, José Martiniano de Alencar envolveu-se também no 1817 pernambucano, da mesma forma que outro deputado às Cortes, agora pela Paraíba, de nome Francisco Xavier Monteiro da França, que integrou o governo provisório local.
Essa longa digressão foi necessária para apontar outra questão, talvez a mais problemática do estudo: a da periodização da crise geral do Império português. Cabe anotar que é pouco consistente buscar a localização da crise de um sistema complexo, fundamentado em critérios extra-econômicos, a partir do comportamento de uma das suas variáveis tecnicamente controláveis: os fluxos mercantis. E parece equivocado fazer convergir para uma data comum as crises das diversas instâncias constitutivas da realidade (a política, a social, a econômica). A crise é processo, e não aparece à consciência dos homens como modelo em vias de superação, mas como percepção da perda de operacionalidade das formas consagradas de reiteração da vida social, cada uma dessas formas portadoras de ritmos e temporalidades específicas.
É na busca de novas alternativas que a crise se manifesta, é nela que adquire efetiva vigência. Tal processo não é linear, e é refratário ao esquematismo, na medida em que, apesar de seu caráter aparentemente errático é, ao mesmo tempo, cumulativo, ainda que isto somente seja perceptível mediante o recurso preciso às categorias teóricas que permitem superar o imediatamente acessível na documentação. O esquematismo (mas não banalização) incomoda o leitor do livro, o que, sem lhe diminuir o mérito, impõe o avanço na discussão das questões propostas.

NOTAS
1. Principalmente em "Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1888)". São Paulo, Hucitec, 1995 (6ª edição).
2. pág. 18.

István Jancsó é professor do departamento de história da USP.

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