São Paulo, domingo, 17 de março de 1996
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A indiferença aqui e os pesadelos lá

SUSAN SONTAG

Fui a Sarajevo pela primeira vez em abril de 1993, um ano depois de iniciada a campanha servo-croata para retalhar o estado multi-étnico bósnio, que acabara de declarar sua independência. Após essa primeira visita, deixei Sarajevo do mesmo modo que chegara, num dos aviões de carga russos da Unprofor que faziam vôos regulares entre Sarajevo e Zagreb.
A incursão na cidade, feita com o coração nas mãos através da trilha serpenteante sobre o Monte Igman, perdia-se num futuro distante, em minha sétima e oitava visitas; até essa data, o inverno e o verão de 1995, meus padrões de perigo e minha tolerância ao choque de Sarajevo já estariam atenuados. Nada igualou ao primeiro choque. O choque da própria Sarajevo: a miséria da vida diária na cidade estilhaçada sob o fogo dos morteiros e dos atiradores de elite. E o choque posterior de retornar ao mundo externo.
Deixar Sarajevo e estar, uma hora depois, numa cidade "normal" (Zagreb). Tomar um táxi (um táxi!) no aeroporto... enfrentar o tráfego regulado por semáforos, ao longo de ruas repletas de edifícios com telhados intactos, muros com reboco, vidros nas janelas... ligar o comutador de luz em seu quarto de hotel... usar o vaso sanitário e depois dar a descarga... ligar a banheira (há várias semanas você não toma banho) e ver a água -a água quente, mesmo- brotar da torneira... dar uma caminhada e ver lojas... e pessoas andando, como você, num ritmo normal... comprar algo numa pequena mercearia com estantes abarrotadas... entrar num restaurante e receber um cardápio...
Tudo isso parece tão bizarro e desconcertante que, durante pelo menos 48 horas, você se sente bastante desorientado. E muito irritado. Falar com pessoas que não querem saber o que você sabe, não querem que você mencione os sofrimentos, o assombro, o terror e a humilhação dos habitantes da cidade que você acaba de deixar. Mas pior ainda é quando você regressa à sua própria cidade "normal" (Nova York) e seus amigos lhe dizem: "Ah, você voltou. Estive preocupado com você". Embora sejam seus amigos e de fato estivessem preocupados, eles também não querem saber. Perceber que você nunca será capaz de explicar-lhes como "lá" é terrível ou como é ruim a sensação de estar de volta, "aqui". Que o mundo estará sempre dividido entre "lá" e "cá".
As pessoas não querem ouvir más notícias. Talvez nunca queiram. Mas no caso da Bósnia, a indiferença, a falta de esforço para tentar imaginar era mais aguda do que jamais supusera. Você acaba achando que as únicas pessoas com quem você se sente à vontade são aquelas que também estiveram na Bósnia. Ou em algum outro massacre -El Salvador, Camboja, Ruanda, Tchetchênia. Ou que pelo menos sabem, por experiência própria, o que é uma guerra.
Isso foi há dois anos e meio. Algumas semanas atrás -escrevo isso em fins de novembro- retornei de minha nona visita a Sarajevo. Embora mais uma vez eu tenha ingressado na cidade pela única via terrestre, essa não era mais uma opção exclusiva (aviões das Nações Unidas aterrissavam novamente numa das pistas do aeroporto destruído de Sarajevo), e a trilha sulcada de lama sobre o Monte Igman deixara de ser a rota mais perigosa do mundo, tendo sido alargada e aplainada pelos engenheiros das Nações Unidas até tornar-se... uma estrada. Nos limites urbanos, pela primeira vez havia eletricidade. As granadas não explodiam, as balas dos atiradores de elite não zuniam entre as cabeças dos moradores. Haveria combustível para o inverno (invernos são rigorosos em Sarajevo). Havia a promessa de água encanada. E, desde meu regresso, foi assinado um acordo em Ohio que promete pôr fim à guerra.
Se a paz -uma paz injusta- realmente chegou à Bósnia, reluto em dizer. Se Slobodan Milosevic, que deu início à guerra, quer o fim dos combates e é capaz de impor essa resolução a seus acólitos em Pale, então a campanha bem-sucedida para destruir a Bósnia, ao matar, deslocar ou condenar ao exílio a maioria da população está, em quase todos os sentidos, terminada. Terminado está, também, o que os bósnios defenderam até o final, suportando o insuportável: seu Estado unitário, reconhecido internacionalmente.
E, assim, a Bósnia (uma Bósnia inteiramente transformada) deverá ser partilhada. E, assim, triunfou a força em vez do direito. Nada de novo nisso -veja Tucídides, Livro 5. É como se o avanço oriental da Wehrmacht tivesse sido contido em fins de 1939 ou início de 1940, e a Liga das Nações em Genebra convocasse uma reunião entre as "partes beligerantes", na qual a Alemanha fosse agraciada com metade da Polônia (a parte ocidental) e os invasores russos com 20% do setor Leste, e se é verdade que os 30% da região central do país -inclusive a capital- fosse deixada a cargo dos poloneses, a maioria do território em torno de Varsóvia passaria ao jugo alemão.
É claro, ninguém alegaria que isso é muito justo, pelos critérios "morais" -e logo aduziria: desde quando prevalecem padrões morais na política internacional? Uma vez que os poloneses não tinham condições de defender com êxito seu país contra as forças superiores da Alemanha de Hitler e da Rússia de Stálin, eles têm de se contentar com o que lhes é dado. Os diplomatas, pelo menos, diriam que eles ainda têm uma parte do país; no início, estiveram próximos de perdê-lo totalmente. E, nas negociações, os poloneses figurariam como os mais impertinentes, pois não veriam a si mesmos como simplesmente uma das três "partes beligerantes". Achariam, ao contrário, que haviam sido invadidos. Colocar-se-iam na posição de vítimas. Os diplomatas que endossassem o acordo os tomariam como insensatos. Divididos entre si. Amargurados. Indignos de confiança. Ingratos para com os mediadores que tentaram conter a carnificina.
Se antes as pessoas não queriam saber -ouvia-se com frequência que a guerra na Bósnia era tão complicada que tornava difícil saber quem estava com a "razão"- agora muitos têm plena consciência de quem é quem. Têm consciência, também, de que a guerra -ou seja, a agressão sérvia e croata- poderia ter sido suspensa a qualquer momento nos últimos três anos, exatamente da mesma maneira e com o mesmo emprego mínimo de força pela Otan (poupando os civis e os soldados na frente de batalha) como finalmente ocorreu em agosto e setembro passados.
Mas os europeus não quiseram pôr termo ao conflito (tanto o Ministério das Relações Exteriores britânico quanto o Quai d'Orsay são tradicionalmente pró-sérvios), e os norte-americanos, a única grande potência a reconhecer que os bósnios estavam com a razão, relutaram em envolver-se na disputa. Agora que a guerra acabou, ou parece ter acabado, sua imagem ganha subitamente contornos mais nítidos. A atmosfera agora é de retrospecção.
*
Uma pergunta que me fazem com frequência quando retorno de uma visita a Sarajevo: por que outros escritores famosos, além de mim, não deram as caras nem passaram uma temporada na cidade? Por trás disso está o problema mais amplo de como explicar a enorme indiferença, ou falta de solidariedade, na Europa (mais notadamente na Itália e na Alemanha) para com as vítimas de um crime histórico aterrador, nada menos que um genocídio -o quarto genocídio de uma minoria européia neste século. Mas, ao contrário do genocídio dos armênios em meados da Primeira Grande Guerra e dos judeus e ciganos em fins da década de 30 e início dos anos 40, o genocídio do povo bósnio ocorreu sob o fulgor da cobertura completa e universal da imprensa e da televisão, a maioria das quais francamente solidária à causa bósnia.
Ninguém pode alegar ignorância das atrocidades ocorridas na Bósnia desde que a guerra teve início em abril de 1992 -Sanski Most, Stupni Do, Omarska e outros campos de concentração com suas câmaras mortais (chacina artesanal, em contraste à matança industrializada dos campos nazistas), o martírio da região leste de Mostar, de Sarajevo e Gorazde, o estupro por ordem militar de dezenas de milhares de mulheres em toda a Bósnia sob o domínio sérvio, a chacina de pelo menos 8.000 homens e crianças após a rendição de Srebrenica... somente uma pequena fração do catálogo da infâmia.
E todos têm consciência de que a causa bósnia é a mesma da Europa: democracia e uma sociedade composta de cidadãos, não de membros de uma tribo. Por que então essas atrocidades, esses valores, não despertaram uma resposta mais virulenta? Por que quase nenhum intelectual de envergadura e renome somou forças para denunciar o genocídio e defender a causa bósnia?
A guerra na Bósnia não é o único espetáculo de terror que se desenrola nos últimos quatro ou cinco anos. Mas há acontecimentos -acontecimentos exemplares- que parecem resumir as principais forças antagônicas de uma determinada época. Esse é o caso da Guerra Civil Espanhola. Assim como a guerra na Bósnia, ela foi também uma luta emblemática. Mas os intelectuais -isto é, escritores, dramaturgos, artistas, professores, cientistas que têm fama de se pronunciar sobre fatos públicos e questões morais importantes- mostraram-se tão conspícuos por sua ausência no conflito bósnio quanto por sua presença na Espanha dos anos 30.
Obviamente, é conceder uma importância exagerada aos intelectuais pensar que eles constituem algo como uma classe perene, parte de cuja vocação consiste em abraçar as melhores "causas" -assim como é improvável que apenas de 30 em 30 anos haja uma guerra em algum lugar do mundo que deva inspirar os pretensos pacifistas a tomarem partido. A maioria dos intelectuais é tão conformista, tão predisposta a dar seu apoio ao prosseguimento de guerras injustas quanto a maioria das pessoas que exercem profissões graduadas. O número dos que consideram os intelectuais (para o bem ou para o mal, dependendo do ponto de vista) como encrenqueiros, vozes da consciência, sempre foi muito pequeno. Ainda assim, o padrão de dissenso e ativismo associado a intelectuais é um fato. (Pense-se em Havel, Pasolini, Chomsky, Sakharov, Grass, Michnik...) Por que tão pouca resposta ao que ocorreu na Bósnia?
Há várias razões prováveis. Impiedosos clichês históricos figuram certamente no caráter mesquinho de muitas respostas. Há a tradicional má reputação dos Bálcãs como uma região de eterno conflito, de antigas rivalidades implacáveis. Não é verdade que aqueles povos estiveram sempre a matar uns aos outros? (O que é comparável a dizer, quando confrontado à realidade de Auschwitz: "Bem, você esperava o quê? O anti-semitismo, sabe, é uma velha história na Europa".)
Também não deve ser subestimada a obstinação do preconceito contra os muçulmanos, uma reação impulsiva contra um povo cuja maioria é tão secular e imbuída da cultura consumista atual quanto qualquer cidadão do Sul da Europa. Ao sustentar a ficção de que essa é, em sua raiz mais profunda, uma guerra religiosa, o rótulo "muçulmano" é usado invariavelmente para descrever as vítimas, seu exército e seu governo -embora ninguém se atreva a nomear os invasores como os "ortodoxos" e os "católicos". Os intelectuais seculares do "Ocidente", de quem se podia esperar que erguessem a voz em defesa da Bósnia, compartilham desse preconceito? É claro que sim.
E não estamos na década de 30. Nem nos anos 60. Na verdade, já vivemos no século 21, época em que tais certezas do século 20, como a identificação do fascismo, do imperialismo ou das ditaduras à moda bolchevique como o principal "inimigo" não oferecem mais uma estrutura (muitas vezes superficial) para o pensamento e a ação. O que tornou óbvio o apelo para tomar partido da República espanhola, apesar de todas suas falhas, foi a necessidade de conter o fascismo. Opor-se à agressão americana no Vietnã (que encampou o esforço malsucedido dos franceses para preservar o domínio sobre a Indochina) fazia sentido como parte da luta mundial contra o colonialismo euro-americano.
Se os intelectuais dos anos 30 e 60 mostraram-se muitas vezes demasiadamente crédulos e propensos aos apelos dirigidos a seu idealismo para compreender o que de fato ocorria em certas sociedades sitiadas e recém-radicalizadas, por eles visitadas ou não, os intelectuais sombriamente despolitizados de hoje, com seu cinismo sempre à mão, seu vício pelo entretenimento, sua relutância em deixar-se importunar por uma causa qualquer, sua devoção à segurança pessoal parecem ao menos igualmente deploráveis. (Perdi a conta de quantas vezes me perguntaram, cada vez que retorno de Sarajevo, como sou capaz de ir a um lugar tão perigoso.)
De modo geral, esse punhado de intelectuais que se consideram pessoas de consciência é agora mobilizado somente para ações limitadas -contra, digamos, o racismo ou a censura- dentro de seus próprios países. Apenas compromissos políticos domésticos parecem plausíveis hoje em dia. Entre os intelectuais que um dia se importaram com problemas internacionais (devo notar que isso parece mais acertado em relação a escritores do que a médicos, cientistas e atores), o autocontentamento nacionalista ganhou prestígio renovado. Houve um declínio vertiginoso da própria noção de solidariedade internacional.
Não só as relações bilaterais no globo (um "eles" versus "nós"), característico do pensamento político ao longo de nosso reduzido século 20, de 1914 a 1989 -fascismo versus democracia, o império americano versus o império soviético- entrou em colapso. O que se seguiu ao despertar de 1989 e ao suicídio do império soviético foi a vitória final do capitalismo e da ideologia do consumismo, que acarreta o descrédito da "esfera política" como tal. A vida privada é o único valor que importa. O individualismo, o cultivo do eu e do bem-estar privado -com destaque sobretudo ao ideal da "saúde"- são os valores aos quais os intelectuais estão mais inclinados a subscrever. ("Como você pôde passar tanto tempo num lugar onde as pessoas fumam o tempo inteiro?", foi uma resposta dada aqui em Nova York às frequentes viagens de meu filho, o escritor David Rieff, à Bósnia.)
Seria muito esperar que o triunfo do capitalismo consumista deixasse incólume a classe intelectual. Na era das compras massificadas, deve ser difícil para os intelectuais, que são tudo menos marginalizados ou pobretões, identificarem-se com outros entes menos afortunados. George Orwell e Simone Weil não exatamente deixaram seus apartamentos luxuosos e suas casas de campo quando se alistaram como voluntários para combater pela República na Espanha, e ambos quase foram mortos. Talvez a distância entre "lá" e "cá" seja agora muito grande para os intelectuais.
Ao longo de várias décadas, foi um lugar-comum tanto na imprensa quanto na academia dizer que os intelectuais, como uma classe, são obsoletos -um exemplo de uma análise que se quer imperativa. Agora há vozes que proclamam também a morte da Europa. Talvez seja mais acertado dizer que a Europa ainda estava por nascer: uma Europa que assume a responsabilidade por suas minorias indefesas e por sustentar os valores que é forçada a encarnar (a Europa será multicultural ou simplesmente não será). E a Bósnia é seu aborto auto-induzido. Nas palavras de Emile Durkheim, "a sociedade é sobretudo a idéia que ela forma de si mesma". A idéia que a sociedade próspera e pacífica da Europa e dos Estados Unidos forjou de si mesma -por meio das ações e das declarações de todos aqueles que podem ser chamados de intelectuais- é uma idéia de confusão, irresponsabilidade, egoísmo, covardia... e de busca da felicidade.
Nossa, não deles. Aqui, e não lá.

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