São Paulo, domingo, 17 de março de 1996
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O calor religioso

DA REDAÇÃO

Leia a seguir trechos de "O Último Suspiro do Mouro", novo romance de Salman Rushdie, lançado no fim do ano passado na Inglaterra e que será publicado no fim deste mês pela editora Companhia das Letras.
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SALMAN RUSHDIE
Ela costumava vir uma ou duas vezes por semana, e ficava sentada por algum tempo junto ao túmulo vazio de Vasco da Gama. A primeira vez que a jovem passou por D'Ateh, como uma imperatriz ou uma grande atriz trágica, ele percebeu que estava perdido. Mesmo antes de ver o rosto dela, o seu já estava ficando arroxeado. Então a moça se virou para ele, e foi como se o sol o inundasse de luz, afogando-o. Imediatamente foi atacado por uma transpiração e uma coceira violentas; inflamações brotaram-lhe no pescoço e nas mãos, apesar das ondas refrescantes de ar provenientes dos grandes ventiladores que movimentavam a atmosfera da igreja num ritmo tranquilo, como se penteassem os cabelos de uma mulher. Quando Aurora aproximou-se dele, a terrível alergia do desejo piorou ainda mais. Disse ela, simpática: "O senhor parece uma lagosta. Parece um circo de pulgas amestradas depois que as pulgas todas fugiram. E que transpiração! Bombaim tem a fonte Flora; nós temos o senhor".
Pronto: ela o havia derrubado. Tinha-o na palma da mão. A partir daquele dia, o sofrimento que as manifestações alérgicas lhe causavam era pinto comparados à dor de seu amor inconfessável e impossível. Ele ansiava pelo desprezo da jovem, pois desprezo era tudo que ela podia lhe dar. Porém aos poucos algo dentro dele começou a mudar. Sério, deliquescente, incapaz de se exprimir, com sua cara de garoto, o padre era alvo de chacotas até mesmo em seu próprio meio. (...)
A Índia era incerteza, era engano e ilusão. Aqui, em Forte Cochim, os ingleses haviam se esforçado para construir uma miragem da Inglaterra, onde bangalôs ingleses cercavam um parque inglês, onde havia rotarianos e golfistas e chás dançantes e partidas de críquete e uma loja maçônica. Mas D'Aeth não conseguia deixar de ver que tudo aquilo era um truque de prestidigitação, não conseguia deixar de ouvir as vogais falsas dos comerciantes de fibra de coco que mentiam sobre suas origens sociais, não conseguia reprimir sua repulsa quando via o jeito grosseiro de dançar daquelas senhoras inglesas que eram, em sua maioria, para ser franco, um tanto vulgares, não conseguia fazer de conta que não via os lagartos hematófilos debaixo das sebes inglesas, os papagaios voando acima dos pés de jacarandá tão pouco britânicos. E, quando olhava para o mar, a ilusão de Inglaterra desaparecia por completo; pois aquele porto era indisfarçável, e, por mais anglicizada que fosse a terra, a água a contradizia; era como se a Inglaterra estivesse sendo banhada por um mar estrangeiro. Estrangeiro e invasor; pois Mortimer d'Aeth sabia muito bem que a fronteira entre os quistos ingleses e o mundo estranho que os cercava havia se tornado permeável, estava começando a dissolver-se. Tudo aquilo retornaria à Índia. Os ingleses seriam -tal como Aurora previra- empurrados para o oceano Índico -o qual, por puro espírito de porco dos indianos, era conhecido lá como mar da Arábia.
Não obstante, pensava ele, era preciso manter os padrões, afirmar a continuidade. Havia o certo e o errado, o caminho de Deus e o caminho torto. Se bem que essas imagens fossem claramente meras metáforas; não se devia interpretá-las literalmente demais, cantar o Paraíso muito alto, condenar um número excessivo de pecadores ao Inferno. D'Aeth acrescentava esse codicilo com certa ferocidade, porque a Índia estava corroendo sua mansidão original; a Índia, onde São Tomé, o cético, havia fundado um cristianismo que era de se esperar que fosse uma religião de incerteza, na verdade recebera a Igreja anglicana, essa igreja tão mansa e razoável, com grandes nuvens de incenso fervoroso e baforadas de calor religioso... Ele olhava para as paredes da igreja de São Francisco, para os mementos de ingleses que morreram jovens, e sentia medo. Moças de 18 anos chegavam à cata de marido, punham os pés em solo indiano e como que mergulhavam direto na cova mais próxima. Herdeiros de grandes famílias aos 19 anos já estavam encerrados em seus respectivos caixões, poucos meses depois de chegarem. Mortimer d'Aeth, que todos os dias se perguntava quando a boca da Índia viria a devorá-lo também, achou o trocadilho que Aurora fizera com seu nome tão desagradável quanto seu hábito de conversar com o túmulo vazio de Vasco da Gama. Não disse nada, é claro. Não seria direito. Além do que, a beleza da jovem parecia ter o efeito de fazer sua língua inchar, de aumentar a sensação de calor e confusão -pois quando ela o transfixava com seu olhar zombeteiro e alegre, ele tinha vontade de que o chão o engolisse- além de vontade de se coçar.

Tradução de Paulo Henriques Britto.

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