São Paulo, domingo, 17 de março de 1996
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A memória frente aos extremos

LUIS KRAUSZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

A incapacidade das palavras em traduzir o horror da vivência do Mal supremo é um dos temas a que Jorge Semprun, em "A Escrita ou a Vida", retorna sempre. A perplexidade do escritor diante da inadequação da linguagem e sua impossibilidade emocional de retomar este tema (ou de separar-se dele) são objetos recorrentes de suas reflexões e memórias, em distintos momentos de uma trajetória de quase 50 anos.
A impossibilidade de superar esta barreira, as marcas indeléveis do "Erlebniss", da vivência, da morte no campo de concentração de Buchenwald afloram em sonhos e alucinações, nos acasos das associações de idéias.
A narrativa de Semprun começa, deliberadamente, no momento em que o jovem de 22 anos acaba de ser liberto pelas tropas do general Patton. Ele observa os olhares atônitos de militares ingleses e de um soldado francês. Incapazes de compreender, eles o fitam, emudecidos: pele e osso, cabelos raspados, andrajoso. Parece vivo!
Semprun percebe que jamais poderá lhes explicar o que viu. O que viveu. As milhares de mortes que vivenciou. Ao espanto dos militares corresponde o espanto do sobrevivente ao perceber que linguagem alguma poderá dar-lhes uma idéia do indizível. Uma imagem poética -se é permitido- lhe ocorre: pergunta aos soldados se é o silêncio dos bosques que tanto os admira. E logo explica: os pássaros há muito foram espantados pelo cheiro de carne humana queimada dos crematórios.
Semprun, jovem estudante de filosofia em Paris, militante comunista, foi deportado para Buchenwald em 1943. Conseguiu sobreviver, selecionado para trabalhar no "Arbeitsstatistik", o escritório encarregado do controle e do trabalho dos prisioneiros. Dentro da hierarquia dos detentos, ocupou um dos pontos mais elevados, que lhe garantia algumas regalias. Ainda assim seu estado, ao término da guerra, é deplorável. Sua memória tornou-se um imenso buraco negro, ameaça tragá-lo, petrificá-lo. Viver ou narrar seus dois anos em Buchenwald se afiguram como opções mutuamente excludentes -a escrita ou a vida? Só uma decisão firme da vontade poderá fazer a diferença neste frágil equilíbrio.
"A Escrita ou a Vida" não é um livro sobre o Holocausto, embora também o seja: o autor busca um lugar, na vida e no mundo, para sua memória de Buchenwald. Pessoalíssimo, é um retrato heróico, protegido pelo véu da modéstia, de um idealista, um personagem romântico, militante da resistência francesa e, depois da guerra, ativista do clandestino partido comunista espanhol, finalmente desiludido com a burocracia pastosa do partido.
As coincidências ocupam um lugar destacado, também, em "Saudações de Federico Sanchez", que aborda o período entre 1988 e 1991, quando Semprun ocupou o cargo de ministro da Cultura de Felipe Gonzalez. Acontecimentos, lugares, pessoas retornam no tempo. Analogias emprestam significado a certos instantes, tecendo nós nas delicadas escrituras da memória. Organizando o passado num todo coerente.
Novamente uma difícil travessia, uma nova mudança de identidade, inicia o livro: da clandestinidade à legalidade, da última viagem com documentos falsos até o convite para o ministério de Gonzalez.
Na cronologia da vida de Semprun, os dois livros obedecem a uma sequência: o primeiro, anos de horror, militância clandestina e revolta, o segundo, a convivência com o poder político.
Próximos do ponto de vista estilístico -e de abordagem baseada numa única memória- retratam condições diametralmente opostas. Juntos formam um retrato de uma trajetória extraordinária, de uma transformação quase alquímica, que vai de um extremo a outro da condição humana.

AS OBRAS
A Escrita ou a Vida - de Jorge Semprun. Tradução de Rosa Freire d'Aguiar. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, cj. 72, São Paulo, CEP 04532-002, tel. 011/866-0801). 298 págs. R$ 23,00.

Saudações de Federico Sanches - de Jorge Semprum. Tradução de Eloisa Araújo Ribeiro. Editora Paz e Terra (r. do Triunfo, 177, São Paulo, CEP 01212-010, tel. 011/223-6522). 280 págs. R$ 22,50.

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