São Paulo, domingo, 17 de março de 1996
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Os divertimentos sexuais do senhor Sigmund Freud

JOSÉ LUIS SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Há vestígios de realismo fantástico no mais recente romance do escritor inglês D. M. Thomas, 60, "Comendo Pavlova". Embora não ultrapasse os limites do possível, Thomas avança e recua com desenvoltura as demarcações entre o verossímil e o mais completo disparate, ao fazer de Freud o narrador de suas supostas alucinações e fantasias, vividas sob o efeito da morfina, em seus momentos terminais.
Tudo começa em 1939, quando Freud, exilado, por conta da barbárie nazista, na Inglaterra, espera a morte sob os cuidados de sua filha Ana. Freud personagem passa então a fazer um exercício de rememoração e a fantasiar a partir de fatos passados -ou, por vezes, futuros, uma vez que Thomas se atém com fervor à tese de que o inconsciente não conhece o tempo cronológico da sucessão dos agoras, nem a contradição.
Ancorado em um amplo conhecimento da biografia de Freud e da doutrina psicanalítica, Thomas usa a voz de Sigmund para criar, com maestria e à semelhança das construções inconscientes, uma série de meias-verdades, narrativas originadas em fatos, mas dotadas de desenlaces fantasiosos, ou mesmo absurdos.
Martha, a mulher de Freud, torna-se irmã por parte de pai de seu marido, e amante do pai sifilítico da paciente "Dora". E Anna externa seu suposto lesbianismo, além de todos os seus devaneios (extremamente) eróticos com Sigmund. Estes são apenas alguns poucos exemplos de muitos outros de natureza semelhante.
O que deste modo se constrói é um jogo intelectual, cujos elementos são a ficção, a realidade e sobretudo os efeitos do ficcional sobre o real. Nunca se sabe, ao se ler o romance, se as tramas apresentadas pelo personagem Freud como revelações tardias são mesmo fatos ou apenas falsidades vergonhosas, criadas pelo velho sofista com o intuito de remodelar a sexualidade de Anna, toda ela estruturada ao redor da identificação com o pai.
Freud aparece assim na letra de Thomas como um ser, mais do que nenhum outro, sujeito aos complexos, em especial o de Édipo, por ele mesmo descritos. Esta humanização do inventor da psicanálise, somada ao estilo realista da narrativa, confere um caráter bastante polêmico ao romance.
Talvez a ortodoxia freudiana classifique o livro de Thomas como mais uma forma, entre muitas outras, de se denegrir a imagem da psicanálise e de seu fundador. Ou apenas como mais um efeito de mau gosto literário (e psicanalítico). Já os inimigos da doutrina talvez só vejam na obra a realização literária da intuição segundo a qual Freud nada mais foi do que um mestre da mascaragem.
Polêmicas virtuais à parte, "Comendo Pavlova" é de fato um romance de maturidade, no qual D. M. Thomas, autor com indicação para o Book Prize (por "O Hotel Branco") no currículo, retorna a seus temas prediletos -o sexo, a morte, os sonhos e a psicanálise.
Em "Comendo Pavlova", "o velho homem sujo da literatura inglesa", como Thomas é conhecido no Reino Unido, de uma só feita revaloriza a teoria psicanalítica como instrumento de criação literária e o romance psicológico, humaniza o pai da psicanálise, e escreve boa literatura de entretenimento. Além, é claro, de confirmar, de modo contundente, a sua fama. Goste ou não o leitor, "Comendo Pavlova" é mesmo um livro "sujo", no sentido moral da palavra, mas não se reduz a isto, nem é vulgar.

José Luiz Silva é mestrando em filosofia na Universidade Federal de São Carlos.

A OBRA
Comendo Pavlova - de D. M. Thomas. Tradução de Rubens Figueiredo. Editora Record (r. Argentina, 171, Rio de Janeiro, CEP 20921-380, tel. 021/585-2000). 303 págs. R$ 22,90.

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