São Paulo, domingo, 17 de março de 1996
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Admirações por Machado de Assis

OTÁVIO DIAS
DE LONDRES

Aos 20 anos de idade, Salman Rushdie leu Machado de Assis. O escritor brasileiro tornou-se uma das influências em sua literatura. "Quando li 'Brás Cubas', 'Dom Casmurro' e 'Quincas Borba', fiquei impressionado com a modernidade de Machado de Assis", diz Rushdie. "Ele é um escritor cem anos à frente de seu tempo." Abaixo, Rushdie fala à Folha sobre seus hábitos de leitor e escritor.
(OD)
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Folha - O sr. se considera um bom leitor?
Salman Rushdie - Sim. Há algum tempo, li uma entrevista com V. S. Naipaul em que ele afirmava não gostar de ler. Disse não ser um leitor, mas um escritor. Achei estranho porque todos os escritores que conheço são grandes leitores.
Acho que não é possível escrever se você não lê. Isso pode ser sentido em meus livros pelas referências que faço. Na última parte de "O Último Suspiro de Mouro", por exemplo, há uma série de referências a "Dom Quixote".
A razão é que, nessa altura do livro, o personagem Mouro sai do mundo que conhece e entra num universo absurdo, que ele não entende. Essa é uma das definições de loucura. E "Dom Quixote" é a grande novela sobre a loucura.
Folha - Que autores influenciaram seu trabalho?
Rushdie - Há dois autores latino-americanos que li por volta dos 20 anos e que contribuíram para minha formação: Machado de Assis e Jorge Luis Borges.
Machado de Assis é um escritor cem anos à frente de seu tempo. Quando li "Brás Cubas", "Dom Casmurro" e "Quincas Borba", fiquei impressionado com sua modernidade. Ele tem uma leveza no toque, uma informalidade na linguagem, seus livros são imaginados de maneira brilhante. Qualquer coisa que falemos de autores como Julio Cortázar, Garcia Marquez ou Carlos Fuentes tem origem em Machado de Assis.
Já "Ficções", de Borges, foi uma revelação. Descobri tantas possibilidades, tantas coisas que a ficção poderia ser. Tive igual sensação quando li Italo Calvino.
Folha - O sr. escreve todos os dias?
Rushdie - Sim, acordo de manhã e trabalho durante o dia. O número de horas depende do estágio do livro em que me encontro. Quando começo uma história, o desgaste físico e mental é muito grande. Após três horas de trabalho, estou exausto. Já no final, posso trabalhar até 14 horas seguidas.
Folha - Entre um livro e outro, o sr. continua a escrever?
Rushdie - Estou sempre trabalhando. Mesmo se não estou no processo de escrever um livro, sento à minha mesa para pensar sobre coisas. Preciso manter esse processo contínuo de pensamento e invenção, porque só dessa maneira as idéias continuam a surgir.
Há também um processo de seleção. Permito que meu inconsciente selecione. Há idéias que ficam na minha cabeça e outras que não. Quando elas não vão embora, trabalho sobre elas pra valer. Mas não me apresso. Espero até ter certeza de que a idéia não vai embora.
A cena polêmica de "Os Versos Satânicos", em que se diz que o profeta Maomé recebeu os versos e recusou-os por achar que quem os estava oferecendo era o diabo, foi algo de que tomei conhecimento na universidade, 20 anos antes da publicação da novela.
Folha - Seus hábitos mudaram durante o período mais difícil da sentença de morte?
Rushdie - Uma das coisas que aprendi foi como trabalhar no computador. Naquele tempo, tinha de mudar de casa a todo momento, não tinha escritório e não podia carregar papéis para onde ia. Então comecei a usar o computador. Nesse período não era possível desenvolver um trabalho na escala de "O Último Suspiro do Mouro". O primeiro livro que escrevi após a sentença de morte foi uma novela de 150 páginas para crianças, algo possível naquele momento.
Folha - De que maneira o sr. quebrou o isolamento em que vivia?
Rushdie - De certa maneira, o problema era a falta de isolamento, o fato de estar sempre cercado de policiais. Escritores estão acostumados com a solidão, têm necessidade dela. Embora os seguranças tentassem ser discretos, minha solidão era constantemente invadida. Morar numa casa com revólveres é algo muito estranho.

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