São Paulo, sexta-feira, 22 de março de 1996
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Comprar revistas de esquerda é ato de teimosia

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

A despeito do neoliberalismo galopante, ou por causa disso mesmo, duas revistas de esquerda surgem no mercado. Há a revista "Esquerda 21", editada na Bahia, que tem como coordenadores executivos o senador Roberto Freire e os deputados Domingos Leonelli, José Genoíno e Luiz Piauhylino. Há também "Atenção", dirigida por Breno Altman, cujo último número fala de aborto, tem artigo de Eduardo Galeano e entrevista com Ênio Silveira.
Ênio Silveira morreu há poucos meses, e foi um dos mais importantes editores do Brasil, à testa da Civilização Brasileira -graças à qual muitos brasileiros vieram a conhecer Marx, Gramsci, Lukács. Seu depoimento é interessante, mostrando a independência que tinha, apesar de membro do Partido Comunista Brasileiro, face à linha ditada por Moscou via Luiz Carlos Prestes.
Curiosa figura, a de Ênio Silveira, no que simboliza de uma contradição vivida dramaticamente pela esquerda nos anos 50-60. Ao mesmo tempo em que tudo o que havia de intelectualmente avançado e interessante provinha da mobilização do PC, o próprio PC proibia seus militantes de pensar. A biografia de Lukács, escrita por Michael Lowy em "Para Uma Sociologia do Intelectual Revolucionário" (ed. Ciências Humanas) é exemplar a esse respeito.
O marxismo, a militância, foram por muitos anos ao mesmo tempo uma máquina de fazer pensar e de fazer parar de pensar. Ser marxista era ser, nos anos 50-70, inteligente e burro simultaneamente. Nem mesmo Sartre, uma das maiores inteligências do século, recusou as tentações da inteligência maquinal, ortodoxa, do Partido Comunista.
O mesmo se pode verificar no campo contrário. G. K. Chesterton, que era inteligentíssimo, apoiava-se na estreiteza católica para ser original e surpreendente. É que toda ideologia fechada, todo sistema dogmático de pensamento, representa uma grande tentação para o intelectual.
É corrente a preferência de pôr o intelecto "a serviço" de alguma causa; todas as sofisticações de raciocínio, toda acrobacia mental, todo atletismo dos paradoxos surgirá como espetáculo para o público, se um gênio se dispuser a obedecer as ordens ditadas pelo diretor do circo. Chesterton seguia os exemplos de Pascal e Chateaubriand, do cardeal Newman e de Hillaire Belloc. Sartre brincava de ser Lênin, Breton, Jaurès, Voltaire. Todos militantes. É uma forma de felicidade, capaz de conjurar o exibicionismo e a disciplina.
Voltando às duas publicações de esquerda no cenário brasileiro. "Esquerda 21" quer nobilitar, aos olhos do leitor crítico, a imagem do Congresso. Parlamentares insatisfeitos, num espectro que vai do PMDB ao PC do B, soltam o verbo. Isso prova, naturalmente, que há "forças vivas" e "personalidades combativas" no parlamento brasileiro. Os Insatisfeitos encontram voz; modulam-na de modo razoável.
"Atenção" é uma revista mensal que investe em reportagens longas, recorrendo bastante a histórias pessoais. Assim, o tema do aborto é tratado a partir dos depoimentos de duas mulheres, uma que tentou abortar sozinha, com o cabo de arame de uma flor artificial; e outra, que foi a uma clínica clandestina. Ouvem-se médicos líderes religiosos e partidários.
O espectro de assuntos é variado: novas técnicas agrícolas, a realização, pela primeira vez em cem anos, de uma eleição "para valer" na central sindical dos Estados Unidos, o drama da pequena empresa brasileira, as chances da esquerda nas eleições uruguaias, a vida dos trabalhadores na região da Transamazônica. Há, a meu ver, a preocupação constante em mostrar o lado "desconhecido", não-oficial, ou mesmo marginalizado, da realidade contemporânea.
O que, ironicamente, corresponde à própria situação da esquerda hoje em dia.
O problema básico dessas publicações é o seguinte. Há 15 ou 20 anos, a "imprensa alternativa" surgia como repositório da verdade. Sabia-se que a "grande imprensa" era censurada pelo governo. Havia um interesse mercadológico, digamos assim, em semanários sistematicamente perseguidos, em denúncias sobre corrupção no sistema financeiro que a grande imprensa não podia ou não queria publicar.
A imprensa alternativa -"Opinião", "Movimento", "O Pasquim"- beneficiava-se de uma conjunção entre interesse jornalístico e diferença ideológica. Denunciava e explicava ao mesmo tempo. Nutria o leitor de "uma visão de mundo abrangente", como se dizia na época, e também fornecia informações mais ou menos censuradas sobre casos específicos, um escândalo bancário, o rombo da previdência, a situação dos índios e a falta de reforma agrária.
Como é sabido, atualmente o charme da esquerda desapareceu. Estranhamente, aquilo que parecia um segredo sensacional -algo que, tendo escapado à censura do regime autoritário, só era conhecido de alguns iniciados inteligentíssimos- tornou-se uma obviedade, uma revelação que já todo mundo imaginava qual era, e mal estava interessado em saber.
Denúncias, informação jornalística, é algo que a "grande imprensa" sabe atualmente fazer como ninguém. As novidades ideológicas, ou melhor, o grande debate de idéias, também encontraram nos jornais um abrigo permitido, no mesmo momento em que se tornavam menos candentes, menos explosivas, menos ameaçadoras do que pareciam aos olhos do regime militar.
Sobra pouco, deste modo, a um gênero de imprensa que se queira alternativo. Naturalmente, a ênfase, a dramaticidade, o empenho melhorista aparecem de um modo que o aparente "niilismo" dos grandes jornais tende a manifestar com um estilo menos militante. Qual o efeito, então?
É o de vermos essas publicações de esquerda como esforços de conquistar um nicho restrito no mercado. São de uma seriedade impressionante: artigos longos, analíticos, fotos em preto e branco compõem um quadro que parece exigir do leitor um empenho consciente. É por ser de esquerda que o leitor comprará a revista nas bancas. Estará no espírito de quem lê um relatório sociológico, embora se faça o possível, nessas publicações, para encontrar uma forma ágil e atraente.
Bem diferente era a situação em que assinar um jornal alternativo representava um ato de inteligência, ou uma vontade de arejamento. Hoje, trata-se de um ato de teimosia, de militância. Insisto no óbvio: a hegemonia ideológica trocou de mãos. O estilo de esquerda parece agora pesado demais, e rebarbativo demais; ao tocar em temas polêmicos e importantes traz consigo o ar de quem carrega, a contragosto um piano ladeira acima, quando até há algum tempo tudo parecia correr ladeira abaixo, empurrado pela fatalidade histórica.
Toda essa avaliação é temporária, conjuntural. O irônico é que as verdades do pensamento de esquerda não foram aposentadas. Alguns anos atrás, era verdadeiro dizer que o programa econômico do FMI só servia aos interesses das potências capitalistas. Hoje, essa verdade se tornou "primitiva", diante de um mundo mais "complexo", que impõe novos "desafios" à economia brasileira.
O debate, como sempre, não se dá em torno do que seja "verdade" ou "mentira", ou não tanto em função disso, mas sim em função daquilo que parece mais sofisticado, mais capaz de "dar a volta por cima" face ao momento histórico anterior. Estando fora de moda, as novas revistas de esquerda cumprem um papel de resistência diante de um público que, entretanto, já não quer o mesmo estilo alternativo e fortemente editorializado dos anos 70. Não tendem a atrair uma massa significativa de leitores. Mas apostam na hipótese de que, um belo dia, o vento mude de direção.

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