São Paulo, sexta-feira, 29 de março de 1996
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A 'miamização' do automobilismo brasileiro

WALTER SALLES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Os norte-americanos são realmente fascinantes. Nenhum outro povo nutre uma devoção tão comovente pelo excesso e pela inutilidade.
A Indy é a extensão desse estado de coisas: como nas provas de arrancada de tratores e caminhões, o que vale é a potência bruta e não o refinamento técnico.
A opção pelos ovais, por exemplo, pode ser vista como a extensão das tentativas de quebra de velocidade no lago salgado de Bonneville.
Assim, o espectador da Indy é informado que Hiro Matsushita atingiu 200 e tantas milhas em Indianápolis, o que significa exatamente o seguinte: nada.
Para quem aprendeu a gostar de automobilismo graças a Jim Clark, Jochen Rindt, Gilles Villeneuve e Ayrton Senna, para quem viu Jacky Ickx andando na chuva, a vinda da Indy ao Rio de Janeiro representa a chegada de uma era: a da miamização do automobilismo brasileiro.
Nenhuma forma de dogmatismo, no entanto, merece ser cultivada. Foi movido por esse estado de ânimo que acabei indo assistir à corrida de domingo retrasado, no autódromo Emerson (Emmo?) Fittipaldi.
Visto de perto, um carro da Indy parece um F-1 desenhado por uma comissão: é grande e não é particularmente bem acabado.
Tirando os jovens talentosos vindos da Indy Lights e os aposentados precoces da F-1, os pilotos cultivam uma certa barriguinha e uma calvície precoce.
Dada a largada, no entanto, a coisa muda de figura.
Os carros andam próximos e, malgrado uma certa monotonia ditada pelo oval, a corrida gera uma dose inegável de emoção.
Mas logo vem uma bandeira amarela, e mais uma, e outras.
Corrida de Indy é assim: uma série de co‹tus interruptus. Depois de um certo tempo, deve-se olhar constantemente para a torre de cronometragem para saber quem lidera, coisa que muitas vezes nem mesmo os pilotos sabem.
No ano passado, em Phoenix, Michael Andretti comemorou com uma intensidade patética uma vitória que não lhe coube.
O que é, então, Indy? Entretenimento norte-americano misturado à tradição européia de competição automobilística e uma fantástica fórmula de promoção.
Primeiro, para pilotos com inegável talento, como Jacques Villeneuve, Gil de Ferran e Greg Moore, que já migraram ou deveriam migrar para coisas mais sérias.
Depois, para os patrocinadores. Estes são necessários e, no caso dos brasileiros, criam a louvável possibilidade de mais pilotos nacionais competirem em provas internacionais.
Mas, ao contrário da F-1, as torcidas organizadas da Indy e a falta de público pagante criam a incômoda sensação de se estar torcendo não mais por um piloto, como no tempo de Ayrton, e sim por uma marca, da mesma forma com que no vôlei tem-se a opção de torcer pelo Leite Moça ou pela Pirelli, o que não é lá muito reconfortante.
Neste domingo, a F-1 volta a Interlagos. Com ela, vêm as saudades de Ayrton, a lembrança das vitórias de Piquet, de Emerson e do Môco.
A F-1 traz consigo uma memória, uma mitologia que transcende a questão do marketing, e é isso que a diferencia radicalmente da Indy.
Assim, nos traços da belíssima Ferrari F310, há o prolongamento de uma tradição iniciada há cinco décadas por Enzo Ferrari, o artista genial que revolucionou a F-1 e, ao mesmo tempo, escrevia no "L'Unitá", o jornal do Partido Comunista Italiano.
Graças a Enzo Ferrari ou Colin Chapman, a Fangio ou Ayrton Senna, a F-1 continuará sendo a mais pura e fascinante forma de competição automobilística.
Para ficar melhor, falta apenas a vinda de um novo piloto brasileiro de ponta.

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