São Paulo, sábado, 30 de março de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Justiça Militar

CLAUDIO MOVILLA ALVAREZ

Já se disse que o processo penal, além de sua função típica, pode ser considerado "um foro de prova da solidez das instituições democráticas" (G. Illuminati). Igualmente, que o papel que de fato corresponde às forças policiais é "o melhor indicador da qualidade ou falta de qualidade democrática da Justiça que se administra num determinado sistema judicial" (P. Ibañes).
Atrevo-me a dizer que os princípios, organização, competências e procedimentos da Justiça Militar são também instrumentos de contraste para avaliar a realidade de um Estado de Direito.
Na Espanha e nos países latino-americanos, a Justiça castrense teve, ao longo dos séculos 19 e 20, características diversas da que deveria ter sido sua única finalidade, abarcando competências relacionadas com a segurança ou ordem pública -em sentido que nada tem a ver com ordem pública democrática-, numa atuação política imprópria do sistema democrático. A jurisdição castrense com frequência se sobrepôs à ordinária.
Essa anômala amplitude da jurisdição militar não é senão uma manifestação de uma desejada autonomização do poder militar, à margem dos poderes constitucionais. As Forças Militares passam a ser outra peça do sistema de poderes, precisamente aquela à qual se atribuem as tarefas mais duras na confrontação política. Essa é, como assinala Garcia de Enterria, uma concepção "terceiro-mundista" das Forças Armadas.
A jurisdição militar deve ficar confinada ao âmbito estritamente castrense, para reprimir os comportamentos que lesionam ou põem em perigo bens ou interesses das Forças Armadas ou prejudicam sua organização e disciplina. Não se pode admitir, no Estado democrático de Direito, a aplicação "normal" do direito militar aos conflitos da sociedade civil, cuja solução ou repressão devem se fazer segundo os princípios e fundamentos da jurisdição comum.
Mesmo a admissão de uma jurisdição militar confinada aos delitos estritamente militares e com âmbito subjetivo limitado aos que têm a condição militar não pode significar que essa jurisdição se coloque fora dos princípios e valores que regem a administração democrática da Justiça. Ao contrário, a especialidade -e não a excepcionalidade da jurisdição militar- exige a submissão plena a determinados princípios e valores como:
a) a diferenciação entre função jurisdicional e linha de comando, excluindo dos titulares desta o exercício daquela;
b) a consagração do princípio da independência dos juízes, que devem ser submetidos unicamente ao império da lei, sem nenhuma outra classe de mediação;
c) a integração dos órgãos judiciais militares por bacharéis em direito, fundamentalmente;
d) a consagração do princípio da unidade jurisdicional, criando no seio dos tribunais turmas encarregadas de conhecer os recursos de âmbito militar, unificando nas cúpulas da organização a jurisdição ordinária e a especial militar;
e) a acomodação do processo militar aos preceitos constitucionais garantidores de um processo justo: defesa técnica, possibilidade de acusação particular, ampla defesa, presunção de inocência etc.
Essa nova configuração da jurisdição militar é um instrumento apto, ainda que não o único, para remeter ao baú as más recordações, o "militarismo", o mais grave dos desvios das Forças Militares, por investi-las de um papel político direto, à margem de qualquer princípio de legitimação democrática.

Texto Anterior: Casos já foram aos tribunais
Próximo Texto: Cuidados médicos
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.