São Paulo, domingo, 31 de março de 1996
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Morte em Sarajevo estava em cada rosto

PETER MAASS

O mais rico exemplo do que eu chamava de pornografia da guerra se encontrava em Sarajevo, no Hospital Kosevo. Visitar Kosevo era como entrar num pesadelo e eu desenvolvi mecanismos para lidar com a situação, já que sempre tinha de ir ao hospital.
Aprendi a resistir à tentação de olhar para onde eu não deveria, de bisbilhotar quartos em que, pressentia, alguém estava morrendo ou tendo órgãos removidos do abdome ou um braço amputado. Quando entrevistava os pacientes, tentava não focar meus olhos nas bandagens sólidas grudadas em seus ferimentos, nem nos lençóis sujos de sangue, nem nos pedaços de metal saltando de seus membros destroçados.
Eu também controlava minha respiração, tentando não inspirar profundamente, pensando que isto poderia evitar que o ar doente do hospital atingisse o interior do meu corpo. Eu aguentava fazer isso por, no máximo, uma hora. Quando o prazo expirava, ia para fora do hospital e respirava profundamente, purificando meu corpo.
Depois desse ritual, se meu trabalho ainda não tivesse terminado, voltava para dentro do hospital. Sem o intervalo do lado de fora, provavelmente não aguentaria e terminaria gritando no meio de pacientes, médicos e enfermeiras.
Necrotério
O hospital de Kosevo consistia de mais de uma dúzia de prédios modernos, espalhados por uma colina, semelhante a um campus universitário. Havia um edifício para a maternidade, outro para doenças infecciosas, outro para psiquiatria e assim por diante. Também havia um necrotério, que ficava ao lado da sala de emergência. Eu nunca fui lá. Se tivesse de ir, teria de ser obrigado pelo trabalho.
Mas na maioria das vezes não precisava, porque outros jornalistas se prontificavam a ir ao necrotério fazer a contagem dos corpos (contar corpos no hospital era a única maneira segura de saber o número de mortos, já que não havia informações oficiais).
Como não ia ao necrotério, me mantinha limpo. Não que tivesse medo de vomitar, ou gritar ou, de alguma maneira, parecer bobo.
Acreditava que, como suportava o ambiente de uma sala de emergência, também suportaria o de um necrotério. Claro que sentiria repulsa ao ver o corpo de um menino sem a cabeça. Entretanto, o que mais me assustava não era a cena em si, mas o fato de que a memória daqueles minutos me perseguiria pelo resto da vida.
Trecho do livro "Love Thy Neighbor - A Story of War"

LEIA MAIS sobre a Bósnia nas páginas 1-27 a 1-29

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