São Paulo, domingo, 31 de março de 1996
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Soldado era a lei e estuprava meninas

PETER MAASS

Aprendi mais sobre a guerra em Visegrad quando conheci uma menina chamada Mersiha, de 17 anos. Ela era muito bonita e isso se tornou uma grande desvantagem quando a guerra começou.
Os soldados de Visegrad logo se encantaram com Mersiha e a levaram de sua mãe, junto com a irmã mais nova da menina. A mãe assistiu à cena do sequestro das filhas gritando histericamente, abraçada às pernas de um dos soldados, que chutou a mulher gritando: "Eu sou a lei!".
O nome do soldado era Milan e os grupos pró-direitos humanos já haviam elaborado um dossiê contra ele, que era considerado o chefe da limpeza racial em Visegrad. Milan levou Mersiha e sua irmã para o Vilina Vlas Motel, que havia sido convertido numa casa de festas para os soldados. Os bósnios chamavam locais como esse de "campos de estupro".
Violência
Mersiha foi trancada em um quarto e sua irmã em outro, no fim do corredor. Mersiha lembra de ter ouvido Milan dizer, às gargalhadas, para que soldados interrogassem a irmã dela, "mas sem exageros". Ela ouviu nova explosão de gargalhadas e, então, um dos soldados entrou no quarto da irmã.
Algumas horas mais tarde, Mersiha ouviu gritos adolescentes e percebeu que vinham do quarto da irmã. Foi a última vez que Mersiha, ou qualquer outra pessoa, teve notícias da garota. Ela tinha então 15 anos.
Milan apareceu logo depois no quarto de Mersiha, trancou a porta, colocou uma mesa em frente à porta e mandou que ela tirasse a roupa.
"Ele disse que se eu não fizesse o que ele mandava, nunca voltaria para casa", Mersiha me contou, falando nervosamente, mas sem alterar o tom de voz. "Aí, mandou que eu tirasse a roupa. Eu não queria. Ele disse que eu tinha que fazer porque, se eu não tirasse, ele tiraria e seria violento. Eu comecei a chorar. Ele disse que eu tinha sorte de estar com ele. Disse que eu poderia ter sido jogada em um rio com pedras amarradas em meus tornozelos. Mesmo assim, não queria fazer o que ele mandava. Ele ficou zangado, xingou e disse que iria trazer mais dez soldados."
Volta
Mersiha fez pausa em sua narração e apertou a mão de sua irmã mais velha, que a acompanhava na entrevista. A conversa durou duas horas, embora me parecesse muito mais. Mersiha contou que tentou parar de chorar enquanto era estuprada por um homem que chamava a si próprio de lei.
Depois que Milan acabou o estupro -ou, como ele gostava de dizer, "o interrogatório"- Mersiha chorou de novo. Milan caiu no sono. Mais tarde, outros soldados bateram na porta e um deles gritou para Milan: "Sabemos o que você tem aí dentro e nós também queremos." Milan os mandou embora.
Às 5h da manhã o soldado acordou, mandou que Mersiha se vestisse e, para sua surpresa, a levou para casa. A mãe de Mersiha estava esperando na porta do prédio. Mersiha não contou o que havia acontecido e sua mãe nunca perguntou. Elas subiram as escadas juntas, chorando.
A família permaneceu em Visegard por mais um mês, na esperança de que a irmã mais nova fosse devolvida. A mãe de Mersiha ia à delegacia todos os dias, mas nunca obteve resposta sobre o que havia acontecido à caçula.
Em uma de suas idas, encontrou Milan. "O que você quer?", ele gritou. "Pelo menos eu devolvi uma de suas filhas."
E foi assim que aconteceu. Não só em Visegard, mas em muitas outras cidades.

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