São Paulo, segunda-feira, 1 de abril de 1996
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Estado contra índios no país da contramão

MARCIO SILVA

O decreto nº 1.775 (08/01/1996) corresponde a um retrocesso na legislação brasileira, uma vez que cria condições efetivas para a redução das terras indígenas, além de possibilitar um desperdício incomensurável de recursos humanos e financeiros, favorecer o agravamento das disputas fundiárias e estimular invasões das áreas em questão.
Só para se ter uma idéia do desperdício: foram apresentadas, até o dia 15 de março, nada menos que 143 contestações, abrangendo um total de 3,7 milhões de hectares de áreas indígenas já demarcadas.
Ao preço médio de R$ 226,77 por hectare (valor fixado pelo Incra para o cálculo de indenizações em regiões como a Amazônia), só essas contestações podem representar uma sangria nos cofres públicos de cerca de R$ 839,049 milhões, a serem transferidos para as contas correntes de alguns poucos "interessados".
E este montante está longe da soma total dos prejuízos. Outros "interessados" têm ainda três semanas para apresentar novas contestações.
Além disso, devemos acrescentar os recursos humanos e financeiros já empregados pelo poder público nos últimos anos nas demarcações das áreas indígenas em vias de regularização, e aí teremos uma idéia aproximada da conta a ser paga pelo contribuinte. Saberemos o número exato de contestações em 8 de abril, quando expira o prazo de 90 dias previsto pelo referido decreto.
Em seguida a Funai (Fundação Nacional do Índio), que hoje conta com apenas cinco antropólogos e alguns poucos advogados em seus quadros, terá apenas 60 dias para a elaboração e o encaminhamento de centenas de pareceres técnicos com a análise das razões e provas apresentadas pelos "interessados" ao ministro da Justiça que, por sua vez, terá 30 dias para se pronunciar.
Mas isso não é o mais grave: das 553 áreas indígenas no Brasil, apenas 218 têm a situação fundiária definida.
As 335 áreas restantes passam a estar sob a ameaça do decreto nº 1.775/96 que, em última análise, produz um paradoxo perverso: a presunção de legitimidade de títulos, ocupação e posse de terceiros em áreas indígenas e, ao mesmo tempo, a presunção de ilegitimidade de atos praticados pela Funai e mesmo pela Presidência da República em governos anteriores, no cumprimento dos preceitos constitucionais.
Finalmente, o decreto nº 1.775/96, ao contrário do seu antecessor (decreto nº 22/91), é rigorosamente omisso quanto à hipótese da revisão de áreas indígenas para o caso daquelas insuficientes em extensão e/ou recursos naturais para a produção e reprodução da vida social lá existente, como, por exemplo, as áreas indígenas Dourados, Caarapó e Amambai (MS), onde moram os Guarani-kaiovás, tristemente célebres por suas altíssimas taxas de suicídio.
O direito brasileiro, como o de qualquer país democrático, assegura o exercício do contraditório.
Se uma área não-indígena for eventualmente definida como tal em um processo demarcatório, o instrumento jurídico à disposição dos eventuais prejudicados é a ação de desapropriação indireta.
A incorporação do contraditório em procedimento administrativo carece de motivação jurídica consistente, como têm demonstrado nossos juristas mais ilustres.
Além disso, o precedente aberto pelo decreto nº 1.775/96 provoca o estímulo daqueles que já tentaram sem sucesso a via judicial a insistirem mais uma vez em suas pretensões.
Os dispositivos atinentes aos povos indígenas brasileiros, garantidos na Constituição de 1988, consignaram uma nova perspectiva institucional, por meio da qual o Estado e todos os seus cidadãos devem agir.
Entre esses dispositivos destacam-se o reconhecimento dos direitos originários sobre as terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens (art. 231), bem como a nulidade e a extinção dos atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e posse de suas terras.
Além disso, a União deveria concluir a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição (art. 67 das Disposições Transitórias). Em 8 de outubro de 1993 este prazo expirou.
Os compromissos do Estado brasileiro com os direitos humanos e, em particular, com as minorias étnicas que compõem a sociedade nacional, consagrados na Constituição de 1988 e na Convenção de Viena (1993), apontam ao presidente da República um único caminho a seguir: a revogação imediata do decreto nº 1.775/96 e a execução de um programa efetivo de demarcação das terras indígenas, sob pena de se tornar o principal responsável pelo recrudescimento das invasões e, consequentemente, pelas eventuais vítimas.

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