São Paulo, segunda-feira, 1 de abril de 1996
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Deus joga boliche em Caruaru

JOSIAS DE SOUZA

São Paulo - Supondo que Deus exista e que somos todos peças de seu jogo supremo, pode-se concluir: o Senhor está de brincadeira com Caruaru, essa religiosíssima cidade do sertão de Pernambuco.
Transformados em peças de um boliche macabro, 126 doentes renais são protagonistas involuntários do passatempo do Senhor. Três dezenas de pacientes já tombaram, mortos.
Há umas duas semanas, onipresente como Ele só, o Jogador Invisível havia passado pela Escócia. Apossou-se das mãos de um louco, armou-as, invadiu uma escola e matou dezesseis crianças. O jogo, neste caso, foi rápido.
Em Caruaru é diferente. O Senhor como que evita o "strike" fatal. Suas vítimas são levadas em conta-gotas. Uma, no máximo duas, por dia.
O ritmo angustia e apavora. É como se Ele desejasse prolongar a brincadeira. Muitos doentes transferiram-se para hospitais de Recife, como se fosse possível teimar contra os desígnios dos céus.
No Reino Unido, as autoridades comportaram-se à altura da dor. Até a rainha Elizabeth abalou-se de Londres para chorar os cadáveres escoceses à beira do túmulo.
Em Caruaru é diferente. A cara da cidade é a do doente esquecido na enfermaria. Semana passada, Fernando Henrique esteve na vizinha Serra Talhada. Poderia ter esticado até o cenário da tragédia brasileira. Não o fez. Pior: discursou na festa de inauguração de um açude e não dirigiu palavra às famílias de luto.
Até bem pouco a Europa não tinha olhos senão para as crianças mortas na carnificina da escola. Eram garotos bem-nascidos. Tinham um futuro diante dos olhos.
Em Caruaru é diferente. As vítimas são pobres e sem perspectivas. A morte de gente assim, tão afeita à atmosfera de desgraça, já não emociona o Brasil. Entre nós, Deus pode brincar do que bem entender.

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