São Paulo, sexta-feira, 12 de abril de 1996
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Verger, os olhos de Xangô

LILIA KATRI MORITZ SCHWARCZ

Dizia o poeta Fernando Pessoa que "para viajar, basta existir". E foi isso que fez Pierre Verger, viajou o tempo todo e de muitas maneiras: como fotógrafo ou etnógrafo, como iniciado ou historiador, como um alquimista moderno ou um grande curioso.
Francês, por acaso, Verger gostava de comentar que detestava a burguesia européia, com a qual era obrigado a conviver, e as imposições da escola, sempre disciplinadora. Mas é com a morte de seu pai, em 1932, que a vida começa a mudar. Verger decide que deixaria essa vida com 40 anos e que, portanto, com os dez anos que lhe restavam viajaria pelo mundo, acompanhado de sua amiga, uma Rolleiflex usada.
Começava, então, a peregrinação desse viajante moderno, que acreditava que cada ano deveria ser vivido sem compromissos, dinheiro ou ambição social. Escolhe primeiro o Taiti e com sua passagem de navio de 4ª classe conhece a Polinésia. Já como fotógrafo profissional (e uma Rolleiflex com 12 fotos em vez de 6), descobre um mundo em preto e branco: os Estados Unidos, com suas disparidades; o Japão, um país muito policiado; a China e suas paisagens legendárias; Filipinas e Cingapura. Em 1935, capta com suas lentes e sua bicicleta, uma outra Europa cheia de tradições populares. Neste ano, chega à África negra. No Sudão Francês (hoje Mali) sua câmara registra as máscaras Bambara e na Nigéria as comemorações islâmicas. Em 1936, parte de barco para as Antilhas e percorre a China: pela Transiberiana atravessa a Europa, a União Soviética e chega à Coréia. De trem, de barco ou de bicicleta, o mundo era ao mesmo tempo grande e pequeno para um viajante do século 20. Mas não é só. Entre 38 e 46 a lista de países só iria aumentar. México em 1939 -onde conhece Trotsky-, Bolívia, Peru, o mundo inteiro parecia caber em sua lente, que guardava rostos, expressões, vestimentas, festas, enfim: vida.
No entanto, era o ano de 1946 que reservava a visita mais desejada: o Brasil. Eis um país pelo qual esperara por cinco anos, um local onde, como gostava de dizer, "não precisava fazer política", uma sociedade que nunca deixou. É uma outra América do Sul que descobre, sobretudo quando, influenciado por R. Bastide, conhece a Bahia. Lá na "África Brasiliense" foi ficando no Hotel Chile, na casa da Vila América, vermelha como a cor de Xangô, deixando o tempo passar no ritmo diferente do calendário das festas, do batuque, do candomblé, da capoeira, da cozinha e da mestiçagem. O "aprendiz de etnólogo" descobria, então, um mundo que unia a África que conhecera e o Brasil que aos poucos absorvia.
O seu mergulho em águas negras é tão profundo que, em 1948, é introduzido no mundo do candomblé. Com seu cordão branco e vermelho, é recebido no terreiro do Axé Opô Afonjá, onde Mãe Senhora proclamou-o Oju Obá: "Os olhos de Xangô; aquele que tudo enxerga e tudo sabe". Verger participa dos rituais como iniciado, e passa a perenidade dos cultos ioruba.
Com um pé em cada continente, não tem outro remédio senão partir novamente para a África. Sua ida selava uma nova sorte, quase prevista nos búzios. Começávamos a perder o fotógrafo, que tudo gravava em imagens, para ver nascer o pesquisador das religiões, o estudioso da escravidão e dos contatos entre África e Brasil. Foi em Daomé (atual República do Benin), em 1949, que Verger descobriu 112 cartas enviadas por um negreiro chamado Tibúrcio dos Santos, "o Alfaiate", sobre o comércio clandestino de escravos entre Bahia e África, durante o século 19. Esse era só o começo de um trabalho que lhe custaria 17 anos de investigação em museus e arquivos. O resultado é o livro "Fluxo e Refluxo do Tráfico de Escravos entre o Golfo de Benin e a Bahia de Todos os Santos", publicado originalmente na França em 1968 (e no Brasil apenas em 1987) e que se constitui em um marco, até os dias de hoje, para os estudos sobre escravidão.
Mas a obra significava, também, a comprovação de um diálogo entre a África e o Brasil, que Verger aprendera a reconhecer no seu dia-a-dia. Ou seja, o trabalho revelava a existência de um jogo de trocas, no qual -apesar da perda de contato entre as duas comunidades- seus integrantes tornaram-se, em termos culturais, "africanos do Brasil e brasileiros da África". No entanto, o sucesso da tese, que defendida em 1966 na Sorbonne deu-lhe o título de doutor, assim como a homenagem feita, anos mais tarde, pela Universidade Federal da Bahia, não deslumbrariam Verger. Para ele o mundo da academia continuava a ser representado pela metáfora de um papagaio sem cor.
É por isso mesmo que, na África, Verger não perseguia, apenas, a rota dos navios negreiros. É no mistério da religião que Verger fez-se adivinho, e nasceu Fatumbi -renascido pelo Ifã-, nome que lhe acompanhará até o resto de sua vida. Essa nova iniciação também lhe dá o título e babalaô, e o acesso ao conhecimento oral dos iorubas e à arte divinatória de Ifã. Dessa experiência resultam livros como "Dieux d'Afrique" (1954), "Notes sur le Culte des Orisha et Vodoum" (1957), e "Orixás", publicado no Brasil em 1981.
A partir de então, Verger desempenharia o papel intelectual, pessoal e emocional de tradutor e mensageiro entre dois continentes. Para o Brasil, trazia a água santa, plantas e objetos, para a África levava cartas, sementes e mensagens orais. O carteiro carregava, sobretudo, as inúmeras conexões e influências recíprocas -sutis ou declaradas- que se desenvolveram entre as regiões e que transmitiam a impressão de unidade. As duas margens do Atlântico guardavam familiaridades e semelhanças, que permitiam prever que, para além das trocas econômicas, restaram sinais de permanências e de trocas culturais.
Seu último desejo foi publicar sua obra "de vida inteira": um manual sobre a utilização medicinal e mágica das plantas na sociedade ioruba. É assim que nasce seu livro "Ewé" ("folhas", em português), um compêndio de ensinamentos dos mestres e babalaôs; uma herança dos longos anos na África. As dificuldades na sistematização dos dados não foram poucas, a começar pela especificidade da língua ioruba, que além de muito antiga é de tradição oral e tonal (é necessário cantar suas palavras). Por outro lado, sua memorização é coletiva e sua transmissão é considerada o veículo do axé: o poder e a força das palavras perdem seu efeito em um texto escrito. Por fim, era preciso identificar a designação científica das plantas: são 3.529 termos iorubas, correspondentes a 1.086 nomes científicos.
Ainda melhor do que conhecer é testar a eficiência dessas receitas. Mas, infelizmente, o leitor terá que fazê-lo sozinho. Aliás, boa parte dessas 447 fórmulas -apresentadas em português e ioruba- promete resultados que estão muito além de nossa vã filosofia. Isto é, as diferentes encantações não têm apenas usos medicinais; seguem uma classificação mais ampla, que começa com prescrições acerca da gravidez e do nascimento, passa pelo tema da adoração de divindades iorubas, para chegar nos trabalhos benéficos e maléficos e de proteção contra esses últimos. A gama de ação é, portanto, imensa: corcundas e tremores, dores no seio ou virilidade, coceiras ou espirros, fraturas ou prisão de ventre, como ganhar dinheiro rápido ou escapar de processos na justiça, dominar alguém ou obter títulos honoríficos, conseguir favores do Rei ou pegar ladrão e -sem esquecer os malefícios- matar o amante da esposa, envenenar ou empobrecer alguém, entre muitos outros receituários.
Fatumbi viveu para ver essa última prova de sua imensa curiosidade ser publicada. Com suas vestes majestosas de babalaôs, seu forte sotaque francês, que nunca perdeu, Verger jamais quis trocar sua casa, no bairro pobre de Vasco da Gama, pelo colorido do Pelourinho. Vivia e viveu entre amigos, com seu gato Jean-Jacques sempre ao colo. Ainda bem que não cumpriu a promessa de morrer aos 40. Foi ficando como quem não tem plano e legou um exemplo de diálogo entre imagens, histórias e culturas. No Brasil encontrou um mundo misturado que tanto procurara.
Fotógrafo que pouco se deixava fotografar, foi capturado pelas lentes simpáticas de Zélia Gattai, que depois de muito esforço -e parte dos filmes estragados- conseguiu uma bela imagem do amigo, ao lado de Jorge Amado e de Carybé (1981). Em conversa com Mãe Senhora, Zélia teria comentado o tipo de azar que tanto a inquietara. Afinal só as fotos de Verger teimavam em não aparecer. Ao que Mãe Senhora obstou: "Minha filha, tu não sabe que Verger é feiticeiro? Não contrarie ele..."

NOTA: Para a realização desse texto, além das experiências pessoais e das obras do autor, foram utilizados os livros: "Pierre Verger. Le Messager" (Ed. Revue Noire) e "Reportagem Completa" (Corrupio) de Zélia Gattai

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