São Paulo, domingo, 14 de abril de 1996
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Maluf diz que PAS é exemplo para o país

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
EDITOR DE DOMINGO

Prefeito afirma que sistema adotado pelo SUS está condenado no mundo inteiro por induzir à corrupção

PAS. A sigla do Plano de Atendimento à Saúde tem frequentado as páginas da imprensa nos últimos meses sempre cercada de polêmicas. Vista como sinônimo de privatização inconstitucional por alguns, tida como sinal de destruição do sistema de atendimento universal por outros, ela é encarada na Prefeitura de São Paulo, ao lado do projeto Cingapura, voltado para a eliminação de favelas, como uma evidência do interesse do prefeito Paulo Maluf pela área social -um ponto deficiente em sua biografia, associada a obras viárias e políticas conservadoras.
Implantado a partir de janeiro, em Pirituba, uma das regiões mais pobres do município, o PAS, apesar das críticas, tem a seu favor a tentativa de superar na área da saúde procedimentos que, embora consagrados, convivem com uma crônica de atendimento deficiente, fraude e ineficiência.
O sistema traz inovações. A primeira delas é a transferência da administração dos postos e hospitais para cooperativas de médicos. As cooperativas cuidam do dinheiro e providenciam os serviços necessários à manutenção e ao funcionamento das unidades.
O dinheiro é repassado pela prefeitura, equivalendo a R$ 10 por pessoa inscrita.
Com isso, o sistema pode fixar previamente os salários dos funcionários. Os médicos, por exemplo, que trabalham 20 horas por semana, recebem um fixo de R$ 2.400, ao qual são acrescidos R$ 800, dependendo da produtividade -o número de consultas deve ser de pelo menos 16 por quatro horas, parâmetro da Organização Mundial de Saúde.
Esse salário pode dobrar, por 40 horas semanais.
O prefeito Paulo Maluf e o secretário da Saúde Roberto Paulo Richter acreditam que o "pré-pagamento" é o melhor antídoto contra fraudes e erros médicos verificados na saúde pública.
Como no PAS o ganho do profissional não está diretamente vinculado ao número de consultas e procedimentos (cirurgias, exames etc.), não haveria indução à falsificação da quantidade de atendimentos nem casos de cirurgias e exames desnecessários, com o objetivo de aumentar a remuneração.
A seguir, Maluf e Richter falam sobre a experiência do PAS.
*
Folha - Depois de várias tentativas na área de Saúde, o sr. acabou convidando um secretário que é engenheiro para chegar a um projeto que vem causando muita discussão. Como surgiu o PAS?
Paulo Maluf - O que eu vou falar é polêmico, mas você pode ter certeza que é da sinceridade do meu coração. Nós verificamos que era muito difícil um médico consertar as deficiências da área da Saúde.
Nós tivemos coragem, pela primeira vez na história do Brasil, de nomear um não-médico para a Saúde. Daí surgiu o PAS.
Folha - O sr. tentou implantar o sistema por decreto?
Maluf - Eu pedi toda a legislação existente e consolidei num decreto. Ele estava para ser implantado quando entrou em ação a indústria da liminar. Seis juízes se negaram a dar liminar contra o PAS, mas o então primeiro vice-presidente do tribunal considerou inconstitucional o decreto.
Conversamos, e ele me disse que um fato dessa importância deveria ser realizado por lei. Poderia recorrer, mas meu mandato ia passar, e eu não teria nenhum resultado. Resolvi abandonar a questão judicial e, em abril, mandei um projeto de lei à Câmara. Ele foi discutido e modificado até setembro.
Finalmente saiu aquilo que eu reputo um paradigma para o Brasil. Sem nenhuma crítica ao professor Adib Jatene (ministro da Saúde), que foi meu secretário, o projeto dele gera aumento de imposto. O nosso é só gerencial, ou seja, com a mesma despesa você obtém maior produtividade.
Folha - A que o sr. atribui as complicações para implantar o PAS?
Maluf - O Brasil é um país de privilégios adquiridos. Mas nós garantimos esses privilégios adquiridos. O médico da prefeitura pode pedir licença para trabalhar no PAS sem perder vantagens e aposentadoria. Mas veio uma campanha muito violenta, de cunho político e ideológico. Porque se o PAS desse certo, seria o ovo de Colombo, como é o Cingapura. Houve muita resistência dos que não queriam trabalhar. Chegaram a mandar doentes terminais para Pirituba, para morrer no PAS. Mandaram cadáveres pré-escolhidos.
Folha - Foi levantado à época, inclusive na Folha, em artigo do sr. Dalmo Dallari, que a prefeitura estaria descumprindo a Constituição, ao abrir mão de um serviço público e passá-lo sem licitação.
"Chegaram a mandar doentes terminais para Pirituba, para morrer no PAS
Maluf - Isso já foi decidido pelo Tribunal de Justiça. Ganhamos por 21 a 2. O dr. Dalmo Dallari, com todo o meu respeito, é suspeito. Ele é partidário. Quando eu instituí o cinto de segurança, houve a mesma conversa. Nossa Constituição tem artigos que se chocam. Invoca-se muito a Constituição para garantir privilégios.
Você deve ter uma leitura da Constituição que favoreça a prestação de serviços e não se esconder atrás dela para ficar defendendo privilégios de vagabundos.
Folha - Quais os resultados que o PAS pode apresentar hoje?
Paulo Richter - Em Pirituba tivemos, em março, 51.935 atendimentos ambulatoriais, contra 24.783 no mesmo mês em 95. Os atendimentos de emergência, ainda comparando março de 95 e 96, passaram de 24.666 para 46.299. Os partos saíram de 9 para 88.
Maluf - Isso nos faz perguntar: o Brasil precisa de investimentos em novos hospitais ou, sem nenhum investimento, de melhor gerenciamento dos existentes?
Folha - O que a prefeitura tem contra o Sistema Único de Saúde (SUS), que é adotado no país?
Paulo Richter - Teoricamente a maior parte da população de São Paulo é atendida pelo SUS. Mas está absolutamente detectado que apenas cerca de 35% dos recursos chegam à população. O resto se perde na burocracia.
O SUS funciona pelo sistema de pagamento por procedimento, que está condenado no mundo inteiro, por ser um sistema que induz à corrupção e a erros nos parâmetros médicos. O SUS paga R$ 2,07 por consulta médica -menos do que um engraxate cobra para lustrar seu sapato.
O que acontece é que, na falta de controle, muitos médicos acabam dizendo que deram, por exemplo, dez consultas, quando só deram uma. Eles preenchem os formulários e recebem. Esse é um problema internacional.
O sistema também induz a erros médicos. Como você paga por procedimento, os médicos tendem a pedir uma série de exames, muitas vezes desnecessários, que beneficiam as entidades que fazem esse trabalho. Em alguns casos até cirurgias desnecessárias são feitas, já que com isso o médico vai receber mais. Há casos conhecidos, até com cesariana para homem.
Folha - Como o PAS se propõe a superar esse problema?
Paulo Richter - O médico ganha por carga horária e produtividade. Significa que se o médico trabalha quatro horas por dia, 20 horas por semana, e cumpre sua carga horária, ele tem um salário básico, mais um acréscimo por produtividade. O total para 20 horas é R$ 3.200. Se trabalhar 40 horas, chega a R$ 6.400, que é mais, por exemplo, do que paga o Canadá.
Folha - O princípio do PAS é implantar lógica empresarial no serviço público. Assim como o SUS poderia induzir à fraude ou ao erro, o PAS não induziria o médico a subtrair receita de medicação ou evitar doentes mais custosos, já que quanto menos se gasta, mais sobra para a cooperativa que administra o atendimento?
Maluf - Em primeiro lugar, há uma auditoria da própria secretaria. Em segundo, há auditorias independentes. Em terceiro, você tem imprensa livre...
Folha - Mas isso também se aplica ao SUS, que é teoricamente fiscalizado e tem imprensa livre...
Paulo Richter - Há coisas falsas divulgadas por quem é contra o sistema. O povo está satisfeito e os médicos também. O nosso sistema não induz à corrupção. É exatamente o oposto. Nos EUA, esse sistema se chama "capitation". Significa o pré-pagamento para alguém ser atendido em saúde.
O "capitation" faz com que o médico trabalhe profissionalmente, independentemente do que ele fizer. Ele vai ganhar se atender ou deixar de atender...
Folha - Mas em termos da cooperativa, se ela reduzir custos, por exemplo, receitando menos remédios, ela ganha mais.
Paulo Richter - Mas nós fazemos um controle mensal dos pagamentos. Controlamos água, luz, vigilância, lavanderia, alimentação e manutenção de equipamentos. Além disso, pela população da região, sabemos quantos médicos são necessários.
Temos também as remunerações estabelecidas. O médico já sabe quanto ele vai ganhar e, com isso, não precisa criar doentes. Ele vai medicar normalmente.
Folha - É esse o ponto. Num sistema, o SUS, quanto mais você atende, mais você ganha. No PAS é o contrário, quanto menos gasta com o doente, mais ganha.
Paulo Richter - Vamos partir do princípio que os profissionais são pessoas honradas...
Folha - Em todos os sistemas...
Paulo Richter - Sim, em todos. Mas no sistema de pré-pagamento, o médico não precisa aumentar atendimentos. Pode, então, trabalhar na prevenção. É um sistema que está sendo testado em vários países. A Universidade de Harvard (EUA) veio observar o PAS e quer fazer uma parceria com a prefeitura.
Maluf - Sobre a questão dos remédios, vamos supor que a quantidade a ser dada à população fosse de tal monta que a cooperativa, a R$ 10 por pessoa, fosse dar prejuízo. Para isso, teremos uma auditoria que irá demonstrar que em vez de R$ 10 deveria ser mais.
Folha - O pagamento que a prefeitura faz é experimental?
Paulo Richter - É lógico.
Maluf - Pode ser pouco mais ou pouco menos. O tempo é que vai dizer.
Paulo Richter - O PAS foi uma idéia que foi trabalhada junto com a Universidade de São Paulo, que nos ajudou a fazer o cálculo, a partir da população, pessoal, custos de manutenção, cesta básica de remédio etc. Chegamos aos R$ 10. Essa quantia poderá mudar, com o aumento do atendimento.
Folha - Uma vez que o PAS prevê um funcionamento parcialmente privado do sistema de saúde, entregando a administração a cooperativas, não seria saudável que houvesse concorrência dentro das regiões? A cooperativa não acaba tendo uma espécie de monopólio regional, com verba e atendimento garantidos? Ela não pode estar, por exemplo, pagando mais por um serviço, já que não tem outra ao lado para concorrer?
Maluf - É um monopólio que pode ser tirado no dia seguinte.
Paulo Richter - Eu diria que nem há monopólio. As cooperativas não podem dar lucro, elas podem ter sobras. Mas quem controla a remuneração, os gastos, o atendimento, é a prefeitura.
Nós recebemos todo mês os planos de aplicação, com tudo que foi gasto, e temos uma auditoria independente -a Price e a Boucinhas (empresas de consultoria) já estão contratadas para isso. A prefeitura sabe mensalmente quanto cada cooperativa está pagando. Com isso podemos informar a uma cooperativa que está pagando mais do que outra pelo mesmo serviço. E ela terá de mudar.
Folha - Os médicos precisam ser bons administradores para manter o PAS funcionando?
Paulo Richter - Eles não são, necessariamente, bons empresários. O que estamos fazendo é exigir que cada cooperativa contrate uma gerenciadora.
Folha - O PAS vai atender doenças mais complicadas, casos de maior gravidade, que exigem sofisticação e mais recursos, como transplantes ou Aids?
Paulo Richter - O atendimento se divide em primário, secundário, terciário e quaternário. A prefeitura atende hoje o primário e o secundário, o atendimento ambulatorial, emergências etc. O terciário, que já é mais sofisticado, só em algumas especialidades. O quaternário, nem se fala -inclui, por exemplo, transplante de fígado ou coração.
Mas vamos tentar contemplar tudo. Digo tentar porque até agora a prefeitura não fez isso -e com o PAS poderá vir a fazer.

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