São Paulo, domingo, 14 de abril de 1996
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grifes

MARIO VITOR SANTOS

Sem querer, a Benetton acertou
Uma publicação da equipe de Fórmula 1 da Benetton, obtida pelos jornalistas da Folha, Humberto Saccomandi e Fernando Rodrigues, descreve São Paulo como o cenário do "Inferno", de Dante, com tantos cadáveres nas ruas quanto cachorros mortos: uma cidade infecciosa, em que a carne e a água estão contaminadas, onde a poluição é tal que já matou a maioria dos mosquitos.
(Uma outra publicação da Benetton, comandada pelo fotógrafo Oliviero Toscani, quis fotografar o subcomandante Marcos, líder da sublevação indígena zapatista na região mais pobre do México, para usar sua imagem em outdoors pelo mundo. A empresa provavelmente pagaria pela photo-op, com fundos que reverteriam para a luta armada zapatista, mas o subcomandante declinou.)
Ofendido, o prefeito Paulo Maluf engrossou a macarronada: em carta à Folha, elogiou a infra-estrutura da cidade, seus "serviços, especialmente na área de gastronomia e hotelaria", criticou a multinacional, chamou-a de apátrida e conclamou os paulistanos a um boicote aos produtos da grife.
Tudo bem que a Benetton queria gracinha, polêmica ou tenha apenas uma visão esnobe e publicitária. Mas também deu uma lição.
A alusão ao cenário do "Inferno" é uma imagem, mas presenciamos cenas talvez piores, que chocariam qualquer comunidade realmente solidária que ainda não estivesse irreversivelmente brutalizada (a parte menos visível e mais podre do cenário).
São favelas, lixo e miséria em todo canto, o contraponto de uma vida rica, frenética e vazia. Não há lugar no mundo em que o contraste entre pobreza e riqueza, com seus "serviços de hotelaria e gastronomia", seja mais acintoso do que aqui.
Sem querer, a Benetton acertou. Os 719 assassinatos na Grande São Paulo em março, essa região "metropolitana" nucleada pela ética da cidade que é a "face mais moderna do Brasil", bateram todos os recordes.
A carne é mesmo contaminada, como noticiou-se recentemente, pois os matadouros praticamente não são fiscalizados, a não ser por veterinários a serviço das próprias empresas. Quanto à poluição, estão aí os problemas respiratórios em crianças no inverno, o rodízio de carros devido ao ar contaminado.
São Paulo hospeda muitos encontros, feiras e congressos internacionais. Sedia outros eventos, como a guerrilha dos camelôs pela ocupação de território público no centro da cidade, a pororoca pútrida dos rios marginais, a falta de atendimento nos hospitais, a mendicância infantil plenamente assimilada.
As autoridades não se omitem, antes aplicam uma política elitista, que no setor de transportes privilegia os que têm grana, os automóveis da classe média influente e relega o resto, a cidade ao deus dará.
A Benetton, equipe em decadência e grife mais ainda, aprontou mais uma. Acertou tanto que Maluf acusou o golpe. É isso, leva-se um não de um guerrilheiro aqui, uma carta de um prefeito culpado ali e a vida segue em frente.

E-MAIL: MSANTOS FOLHA.COM.BR
ILUSTRAÇÃO: ANTONIO MANUEL, EIS O SALDO, 1968

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