São Paulo, domingo, 21 de abril de 1996
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Moderno e arcaico

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
EDITOR DE DOMINGO

O monumento é bem moderno, o presidente é bossa-nova, meu carro é vermelho, mas no joelho uma criança sorridente, feia e morta estende a mão.
Não adianta fugir, nem fingir para si mesmo: o Brasil é um absurdo. O país da alegoria tropicalista continua vivo e a a convivência do arcaico e do moderno, para usar terminologia da época, permanece marcando essa sociedade de assimetrias espantosas.
"Belíndia", "dois Brasis" ou como queira o freguês -o problema recorrente é esse: a divisão. Foi o presidente quem falou: o país não é pobre, o país é injusto.
Mas, no Eldorado paraense de cada dia, o que é justiça, senão uma palavra vazia cheia de ecos ocos? Há quanto tempo o desfile maltrapilho dos miseráveis passa pela janela do seu automóvel refrigerado?
Há quanto tempo governos se dizem "preocupados"?
O problema aqui é que o problema nunca é o problema: a perspectiva de uma CPI para investigar o sistema bancário atrai mais atenções e gasta mais energias do poder do que as multidões famélicas do campo e do asfalto.
O fato é que o Brasil dos excluídos não incomoda o investidor estrangeiro, não atrapalha as reformas e não ameaça o Real.
Só atrapalha quando aparece em clipe de Michael Jackson ou em reportagem da CNN.
O resto, o outro Brasil garante.
*
E já que o país está dividido mesmo, e já que a divisão não parece ter solução à vista, a melhor proposta, como sugere o jornalista Reinaldo Azevedo, é ter dois presidentes. Um para a porção Bélgica, outro para a porção Índia.
Ovo de Colombo! FHC ficaria, com todos os méritos, presidindo o Brasil moderno. Continuaria tocando o programa liberal, promovendo o ingresso do país no mundo globalizado, fazendo viagens, impressionando empresários, salvando o sistema financeiro, tentando reformar o Estado e cuidando da estabilização.
Um outro seria eleito só para o Brasil arcaico. Cuidaria da reforma agrária, do analfabetismo, da miséria, da saúde, da educação.
E talvez um dia os dois se encontrem.
*
O problema do massacre de Eldorado -que nome!- não é se o coronel errou ou se os sem-terra tinham revólver. O problema é que a questão social no país continua sendo um caso de polícia. É na favela, é na periferia, é no campo.
*
Não se pode duvidar da sinceridade do presidente no repúdio ao episódio do Pará.
Mas pode-se discutir se o governo está empenhado em avançar numa área cuja explosão vem sendo anunciada em sangrentos capítulos há tempos. O que você acha?

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